sexta-feira, 15 de maio de 2015

BANHO DE BIQUEIRA

Por Rangel Alves da Costa*

Nesta quinta-feira logo cedinho, por prazer e força das circunstâncias, coloquei em prática um velho hábito sertanejo: banho de biqueira. Depois de muitos dias sem água e quase um mês sem chover, hoje amanheceu com nuvens carregadas e não demorou muito para as águas se derramarem. Não era chuva forte, mas batendo no telhado escorreu em deliciosa e providencial cachoeira.

No meu tempo de menino sertanejo não deixava passar uma chuvarada e logo corria para as calçadas em busca de biqueiras. A meninada em festa pulava de canto a outro, enquanto alguns se danavam a correr nus pelo meio das ruas, a se jogar de barriga pelas calçadas lisas ou simplesmente se enlamear nas muitas poças que se formavam.

Também era costume depois descambar para os lados do riachinho e de lá só sair quando chegava alguém avisando que a chinela estava esquentando em casa. Mas as águas do riachinho só prestavam ao banho se há dois ou três dias já tivesse chovido forte nas cabeceiras e as águas sujas já tivessem dado lugar às águas novas. E também não havia a imundície e a devastação que hoje se observa em todo o seu leito.

Desse modo, o banho de biqueira sintetiza não só uma prática sertaneja como uma doce recordação da infância. Naqueles idos, quando o telhado da maioria das casas descia um pouco além da parede da frente e geralmente os moradores colocavam canos abertos ou calhas para conter as águas de chuva, dos cantos descia um verdadeiro aguaceiro. Era ali que a meninada se juntava para o banho festeiro.


Residências havia que a encanação era interior e com uma abertura na própria parede da frente. Quando a chuvarada era forte dali também jorrava a água tão desejada pela molecada no seu encantamento sertanejo. Ora, era prazer de criança e maravilhamento diante de tanta água escorrendo num sertão marcado pelas secas devastadoras. Talvez por isso mesmo, pelo encantamento também envolvendo os pais, que os filhos podiam se esbaldar debaixo da molhação.

Tempos bons estes de chuvaradas e biqueiras nos idos do meu sertão. Não sei se as crianças de hoje ainda se deleitam com banhos de biqueiras. Talvez apenas alguns, nas ruas mais afastadas, longe dos olhares diferenciados de hoje em dia. Tomar banho nu e correr pelas ruas como veio ao mundo nem pensar. Os tempos são outros e a nudez infantil já não é vista na mesma perspectiva de antigamente. Sempre há uma maldade espreitando ao redor.

Hoje pude reviver um pouco desse passado. Não só tomei banho de biqueira no quintal, como o fiz como se estivesse distante. Esperei a chuva cair o suficiente para lavar o telhado e então me deixei molhar sem pressa, sentindo no corpo um prazer antigo. Um prazer menino, um deleite de quem não esqueceu o passado.

Só mesmo a chuva para salvar o banho nestes dias de total ausência de água nas torneiras. O sol estava quente demais, o calor insuportável, as pessoas evitando até sair de suas casas. A cidade está mais vazia por causa disso. E se não fosse essa chuva do amanhecer, não sei como seria o restante do dia sem sequer um balde d’água para enganar o corpo sempre suado. Pelas informações repassadas, só mesmo a partir de amanhã que os pingos voltarão. Mas água de verdade só mesmo ao final do mês.

Por isso que me agrada observar que o tempo continua nublado. Se voltar a chover mais forte não vou nem pensar duas vezes em procurar o chuveiro ao ar livre. Como me agrada ser novamente menino depois de tantos anos. E como gostaria que o menino estivesse debaixo das biqueiras das casas humildes do meu sertão. Mas, enfim, a vida, o tempo. E essa outra chuva que se forma na nuvem dos olhos.

Poeta e cronista
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