Por Rangel
Alves da Costa*
Nesta
quinta-feira logo cedinho, por prazer e força das circunstâncias, coloquei em
prática um velho hábito sertanejo: banho de biqueira. Depois de muitos dias sem
água e quase um mês sem chover, hoje amanheceu com nuvens carregadas e não
demorou muito para as águas se derramarem. Não era chuva forte, mas batendo no
telhado escorreu em deliciosa e providencial cachoeira.
No meu tempo
de menino sertanejo não deixava passar uma chuvarada e logo corria para as
calçadas em busca de biqueiras. A meninada em festa pulava de canto a outro,
enquanto alguns se danavam a correr nus pelo meio das ruas, a se jogar de
barriga pelas calçadas lisas ou simplesmente se enlamear nas muitas poças que
se formavam.
Também era
costume depois descambar para os lados do riachinho e de lá só sair quando
chegava alguém avisando que a chinela estava esquentando em casa. Mas as águas
do riachinho só prestavam ao banho se há dois ou três dias já tivesse chovido
forte nas cabeceiras e as águas sujas já tivessem dado lugar às águas novas. E
também não havia a imundície e a devastação que hoje se observa em todo o seu
leito.
Desse modo, o
banho de biqueira sintetiza não só uma prática sertaneja como uma doce
recordação da infância. Naqueles idos, quando o telhado da maioria das casas
descia um pouco além da parede da frente e geralmente os moradores colocavam
canos abertos ou calhas para conter as águas de chuva, dos cantos descia um
verdadeiro aguaceiro. Era ali que a meninada se juntava para o banho festeiro.
Residências
havia que a encanação era interior e com uma abertura na própria parede da
frente. Quando a chuvarada era forte dali também jorrava a água tão desejada
pela molecada no seu encantamento sertanejo. Ora, era prazer de criança e
maravilhamento diante de tanta água escorrendo num sertão marcado pelas secas
devastadoras. Talvez por isso mesmo, pelo encantamento também envolvendo os
pais, que os filhos podiam se esbaldar debaixo da molhação.
Tempos bons
estes de chuvaradas e biqueiras nos idos do meu sertão. Não sei se as crianças
de hoje ainda se deleitam com banhos de biqueiras. Talvez apenas alguns, nas
ruas mais afastadas, longe dos olhares diferenciados de hoje em dia. Tomar
banho nu e correr pelas ruas como veio ao mundo nem pensar. Os tempos são
outros e a nudez infantil já não é vista na mesma perspectiva de antigamente.
Sempre há uma maldade espreitando ao redor.
Hoje pude
reviver um pouco desse passado. Não só tomei banho de biqueira no quintal, como
o fiz como se estivesse distante. Esperei a chuva cair o suficiente para lavar
o telhado e então me deixei molhar sem pressa, sentindo no corpo um prazer antigo.
Um prazer menino, um deleite de quem não esqueceu o passado.
Só mesmo a
chuva para salvar o banho nestes dias de total ausência de água nas torneiras.
O sol estava quente demais, o calor insuportável, as pessoas evitando até sair
de suas casas. A cidade está mais vazia por causa disso. E se não fosse essa
chuva do amanhecer, não sei como seria o restante do dia sem sequer um balde
d’água para enganar o corpo sempre suado. Pelas informações repassadas, só
mesmo a partir de amanhã que os pingos voltarão. Mas água de verdade só mesmo
ao final do mês.
Por isso que
me agrada observar que o tempo continua nublado. Se voltar a chover mais forte
não vou nem pensar duas vezes em procurar o chuveiro ao ar livre. Como me
agrada ser novamente menino depois de tantos anos. E como gostaria que o menino
estivesse debaixo das biqueiras das casas humildes do meu sertão. Mas, enfim, a
vida, o tempo. E essa outra chuva que se forma na nuvem dos olhos.
Poeta e
cronista
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