Por Rangel Alves
da Costa*
Sim, eu era
mais velho, bem mais velho do sou agora. Já tive oitenta, já cheguei perto dos
cem anos. E creio até que muito mais que isso. Acreditem, conheci da velhice
muito além do que a geriatria e a psicologia poderiam imaginar. Diferentemente
do que diz a voz popular, pois supõe a idade provecta como uma fase de
enfermidades, tristezas e desilusões, sentia-me verdadeiramente senhor do
tempo. Eu era sábio, eu era mestre em meio a discípulos, eu era a flor da razão
e do conhecimento.
Como se
estivesse no cume de uma montanha bem alta, lá de cima avistava a vida sem
disfarces. Nada mais me surpreendia, nada mais me enganava, eis que tudo eu já
conhecia como a palma de minha mão. As guerras, os dolorosos acontecimentos do
mundo, a violência, o espanto e o medo do povo, a arrogância da vida e o
sofrimento de muitos, tudo isso me chegava como um espelho: Assim teria de
acontecer. Tudo uma questão de tempo. Nada de novo debaixo do sol!
E que belo
Eclesiastes colocando o homem no seu devido lugar, colocando o sujeito como
reflexo de qualquer um, sem mais poder ou riqueza, sem mais luxo ou bonança,
pois ouro hoje e amanhã um cobre enferrujado. E que belo livro esse que ensina
a esperança, a perseverança a força para a continuidade dos sonhos. Nada será
eterno sofrimento, nenhuma mão deixará de ter o seu pão, nenhuma luta será vã.
Ora, o livro ensina, ensina, mas o que faz o homem? Eis que sobre a terra
poucos conhecem as lições, e por isso mesmo que nada de novo parece surgir
debaixo do sol.
Muitos dos
meus instantes de velhice eu passei folheando o livro sagrado. Lia e relia,
voltava aos evangelhos, aos salmos, às sabedorias, ao percurso de um Cristo
sofredor na construção de seu templo. O templo de um mundo sonhado, e que
certamente não possui a feição de agora. Coisas de velho, sempre diziam ao me
avistar subindo a montanha levando a certeza à mão. Não sabiam, porém, que nas
páginas daquele livro também estava escrito o mundo tormentoso lá embaixo e
arredores. Um mundo de homens esquecidos de Deus e que transformaram a
permissão de existir na destruição de si mesmos.
Não eram
poucos os que desacreditavam no meu conhecimento, principalmente por ser um
velho, e envelhecido demais. Mas quando eu era mais velho gostava de ser assim,
bem velhinho, corcunda, calejado, andando lentamente, quase uma folha de outono
ao vento. Não pensava em ser diferente porque a pessoa vive segundo as
circunstâncias da idade, não procurava mostrar qualquer vigor físico além
daquele que me mantinha em pé e com a mente suficientemente boa para pensar. E
que idade boa é a da velhice. E que tristeza quando fui deixando de ser velho.
Deixar de ser
velho foi uma das maiores decepções de minha vida, e até hoje fico entristecido
só em pensar que tive de deixar o ponto mais alto do cume mais alto da
montanha. Um dia, avistando a vida lá de cima, eis que olho ao redor, pelas
redondezas do mundo lá embaixo, quando percebi um caminho novo descendo
montanha abaixo. E uma voz sem face, porém suave como cristal, dizendo para
seguir por aquela estrada. E lá reencontre um tempo que de agora em diante será
o seu.
Em obediência
à voz, pois já a tinha ouvido nos momentos de oração no alto da montanha,
lentamente fui descendo até colocar os pés naquele novo caminho. E fato
interessante começou a acontecer, pois quanto mais eu caminhava mais sentia
força e disposição. Não sentia sede ou cansaço, apenas caminhava, e caminhando
me vi de repente correndo. Ora, mas um velho não faz assim. Mas eu já era outro
na mesma feição. Tão jovem por dentro que mais parecia um pássaro pronto para
alçar voo.
Tudo tão
diferente a partir desse instante. O mundo, que pelas mazelas rapidamente se
destruía, e por isso mesmo eu o avistava com piedade, era o mundo que me
chamava a vivenciá-lo. A vida, que pela perda de zelo na existência eu a sentia
com compaixão, era a vida que me chamava à sua realidade. Ora, aquele velho
havia ficado lá na montanha, e o que se via diante do mundo novo era um ser bem
diferente.
O que fazer
agora, foi a última coisa que pensei antes de perder também a feição
envelhecida. O velho não existia mais, apenas a pessoa convivendo com uma
realidade pela qual sofria tanto. Quer dizer, o doloroso mundo que tanto
atormentava o velho agora era a tormentosa realidade que ele tinha de
vivenciar. Porém sem ter mais ideia do erro ou do acerto, da boa ou má ação,
pois apenas mais um dentre tantos que só pensavam em viver o momento, em
curtir, em tirar proveito de tudo.
Não sei por
que, mas sofri, chorei, padeci a cada instante da nova vida. Não experimentei
os vícios mundanos, não me entreguei a orgias, não me despi das grandes
virtudes. Ora, então eu não servia para este mundo. E talvez não servisse
mesmo, tanto assim que fui forçado a tomar o caminho de volta. E voltei pela
mesma estrada para ser ainda mais velho. E sofrer muito mais com o mundo
avistado lá do alto da montanha.
Poeta e
cronista
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