Por Rangel Alves
da Costa*
Diferentemente
do que muitos imaginam, as ruas possuem feições, alma, espírito, sentimentos.
Também guardam em si todo um enlaçamento orgânico e afetivo, toda uma magia que
as tornam vivas e pulsantes. Por isso mesmo engana-se quem nelas avistar apenas
casas, edificações, muros, asfalto, calçamento, pessoas que vão e que voltam. E
que olhar sincero é o das ruas, que memória tão rica elas possuem.
Alguém já
disse que a rua, nua em si mesma, apenas no seu jeito de ser tão próprio, é a
poesia escrita no chão do lugar. Nela as rimas de uma natureza que foi sendo
desbravada, as estrofes dos primeiros passos que ali chegaram, os versos
antigos das primeiras moradias, o poema perfeito na coexistência familiar, o
livro rico de velhas e novas gerações. Desse modo, as ruas se tornam além de
caminhos para se afeiçoarem a vidas enraizadas.
No livro “A
alma encantada das ruas”, o jornalista e escritor João do Rio, pseudônimo
utilizado por João Paulo Emílio C. Ribeiro (1881-1921), um exímio cronista da
vida carioca de antigamente, tece com maestria o desvendamento existencial,
espiritual e sentimental que possuem as ruas. Segundo o cronista, estas são os
retratos fiéis de seu tempo, de sua gente, de sua vida. Tudo acontece e pede
passagem por cima de seu leito e suas esquinas. Aqueles relatos, como retratos
em preto e branco, servem como analogia para a compreensão do espírito e da
alma das ruas aracajuanas.
As ruas de
Ará, como diz a música de Paulo Lobo, mesmo que em grande parte já tomadas pela
voracidade e dureza do concreto e ferro, ainda não espantou de vez o bucolismo
interiorano que ainda é uma das características da capital. O novo envidraçado
e forjado no mármore e granito ainda não engoliu a arquitetura de ruas simples
e suas residências singelas. Os esmeros nas construções mais antigas ainda
estão preservados nos casarões construídos pela burguesia antiga no centro da
capital, seguindo pelas margens do Rio Sergipe, na Rua da Frente, bem como nos
arredores da atual Barão de Maruim.
A cidade
nasceu a partir da Colina do Santo Antônio, porém só desceu a ladeira depois
que o Engenheiro Pirro formatou o seu tabuleiro. A atual Av. João Ribeiro, que
inicialmente se chamou Estrada Nova, passou a interligar aquele núcleo ao
centro da capital. Mas lá em cima, nos arredores da Praça Siqueira de Menezes e
da Igreja do Santo Antônio, ainda a existência de magníficos casarões com sua
bela visão da cidade, rodeados de árvores frutíferas e numa ambientação ainda
tão natural que nem recorda estarem tão próximos da voracidade do asfalto e do
cimento.
Um pouco mais
adiante, já na direção das águas circundantes da capital, pequenas e estreitas
ruas que aos poucos vão tomando cheiro forte de maresia e de cais. Ao chegar a
Av. General Calazans, onde se tem hoje a Orlinha do Bairro Industrial, a cidade
vai sonolentamente despertando para o urbano desenfreado. E as muretas tantas
vezes malcheirosas pelos esgotos lançados nas águas do Rio Sergipe, chegam aos
mercados centrais e daí seguem pelas suntuosas avenidas até a costa praieira.
São as vias do asfalto, do trânsito desenfreado, da imobilidade urbana.
Desde a região
dos mercados Antônio Franco e Thales Ferraz, rumando ao centro pela José do
Prado Franco e Ivo do Prado, que a Aracaju antiga continua viva na magistral
arquitetura das imponentes edificações. A riqueza arquitetônica ainda está
preservada em prédios como o da Associação Comercial, Palácio Serigy, antiga
Alfândega e o conjunto de palácios públicos da Fausto Cardoso. A partir da
região dos mercados, pela Rua da Frente, ainda são encontrados prédios
majestosos de um tempo de fausto e de esmero arquitetônico. Mesmo as fachadas
que hoje encobrem a maioria das lojas comerciais não conseguem esconder as
feições do rico passado aracajuano.
Se no passado
as ruas eram de habitantes de feições mais conservadoras, com muitos na
usualidade de ternos de linho branco, chapéus e encontros em torno dos cafés
famosos, atualmente a cidade se vê despojada de tais formalidades. As pessoas
parecem não ter tempo senão de correr para sobreviver, cortando ruas e avenidas
num apressamento contrastante com as facilidades modernas. Mas as ruas
continuam simples, até humanas em muitos aspectos. As residências, porém,
parecem amedrontadas e por isso mesmo sempre fechadas ou cercadas de muros.
Muito diferente de uma Aracaju de portas e janelas abertas e cadeiras nas
calçadas para os costumeiros proseados da vizinhança. E não faz muito tempo que
era assim.
Pelos
arredores das ruas antigas e familiares dos bairros Santo Antônio, Industrial e
outros mais antigos, ainda se percebe um clima misto de passado e presente.
Ainda há casas recuadas e edificadas quase rentes a quintais e pomares. As
edificações novas não sobrepujaram a simplicidade das moradias. A Rua São João,
por exemplo, por muito tempo viveu se resguardando para os festejos juninos.
Ali uma gente de alma interiorana e prazerosa em receber amigos nas noites
festeiras.
Há, assim, uma
conjugação do novo e do antigo nas ruas de Aracaju. Ainda há o Beco dos Cocos,
porém sem a vida noturna de outros tempos, e a Trav. Deusdeth Fontes e as suas
lojas com feições de cinquenta anos ou mais. Um punhado de história na soma dos
160 anos da capital.
Poeta e
cronista
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