Por Rangel Alves da Costa*
Diferentemente
do que hoje ocorre nas cidades e grandes centros, onde a morte parece ter se
transformado numa consternação momentânea e sem o afloramento sentimental de
outros tempos, em muitos lugares sertanejos ainda se chora a dor verdadeira, se
lamenta em profundidade e os momentos de despedida se alongam em gestos que vão
além das velas, rezas e encomendações.
Contudo, até
mesmo nas regiões sertanejas mais distantes a morte está sendo cada vez mais
vista como fato inevitável, um destino de cada um e que, por isso mesmo, os
lamentos devem ser comedidos, ainda que o sofrimento íntimo seja, em muitas
situações, indescritível. Mas tudo diferente de tempos passados, e não muito
distantes, onde o anúncio da partida de alguém já prenunciava um ritual envolvendo
comoções e atitudes de toda ordem.
Mas também num
tempo de religiosidade mais consistente, mais presente na vida de todos. Numa
época em que o apego às coisas divinas se mostrava como razão maior da vida,
como sustentáculo para vencer as tantas dificuldades e manter vivas as
esperanças de um povo tão sofrido. E com a religiosidade a fé incontida, e na
fé o apego aos mistérios e segredos divinos, e em tudo o respeito maior ao que
envolvesse a vida, o pecado, a morte e a salvação.
Daí que a
morte de alguém envolvia não só o sofrimento e a tristeza pela perda como
também a preocupação com a preparação da despedida. Ora, no velório e sentinela
estavam toda a representatividade da pessoa, pois quanto mais conhecida ou
querida na comunidade mais encomendada seria sua alma. Desse modo, o velório
era a oportunidade de demonstrar a bondade do defunto, sua importância, como se
dera sua passagem terrena. Por isso que muitos se mantinham em sentinela sem
arredar o pé.
E as
demonstrações envolviam os rituais e atitudes tão conhecidas até os dias
atuais, como outras que somente algumas comunidades preservavam e faziam
ressurgir na despedida. Lágrimas, tristezas, lenços encharcados, olhos
vermelhos, gente insistindo em não acreditar que aquela morte tenha ocorrido.
Caixão estendido na sala da moradia, velas acesas, imagens sacras, rezas,
ladainhas, ofícios de toda ordem. Palavras singelas, dizeres de conforto,
demonstrações de carinho, desmaios. E até os exageros nas virtudes e bondades
do falecido.
Mas como
moradia de sertanejo nem sempre cabe mais de dez pessoas no aperto da sala da
frente, logicamente que os amigos se espalhavam pelos arredores, na frente e
nos lados da casa. E muitos permaneciam ali mesmo depois da noite fechada,
varando a madrugada, não arredando o pé de jeito nenhum. E uma gente que
entristecida demais silencia e sofre, mas também uma gente que conversa e que
procura fugir da dor com palavras amenas. E ainda outros que acendem fogueiras
para passar a noite bebendo o morto.
Beber o morto
é costume inseparável na tradição sertaneja. Tenha sido em vida bebedor ou não
o defunto, depois de morto é homenageado com cachaça da terra, aguardente da
boa que vai passando de mão em mão. Assim, do lado de fora da casa, pelos
cantos escurecidos ou nos beirais de fogueiras, os amigos se reúnem amenizando
a dor com os efeitos da branquinha. Também verdade que alguns se dirigem até o
velório e ali amanhecem não porque tenham qualquer consideração ao estendido,
mas pela devoção que sentem pela aguardente.
Esse costume
de beber o morto acaba provocando situações inusitadas. Aquele que era só
tristeza ao lado do defunto, não demora muito e já está às gargalhadas do lado
de fora. Dose após dose, golada após golada, e vão surgindo aboios, cantigas,
discursos e até a revelação de segredos que deixam todos boquiabertos.
Cambaleante, o amigo se aproxima do caixão e diz ao morto que fique de boca
fechada porque agora quem vai falar é ele. E se ouve cada uma de fazer
desmaiar.
Daí todo o
encanto, embora por dolorosos motivos, dos autênticos velórios sertanejos. Mas
nada mais comovente que as sentinelas que adentram a noite e varam a madrugada
com aquelas vozes ecoando lamentos. Mesmo ao longe, as preces, rezas e orações
são ouvidas numa plangência de cortar coração. Velhas senhoras com seus terços
e rosários, seus véus negros e feições entristecidas, encomendando a alma do
morto através das incelenças. Estas são cânticos especialmente recolhidos do
tempo para ajudar na passagem do morto.
“Uma incelença
de Nossa Senhora,
Pega essa
alma, entrega na glória
É de levar, é
de levar
Esse presente
pra Nossa Senhora
Duas incelença
de Nossa Senhora,
Pega essa
alma, entrega na glória...”.
“Uma
incelência
Ô mãe amorosa,
Seu filhinho
vai morto
Na vida
saudosa.
Duas
incelências
Ô mãe amorosa,
Seu filhinho
vai morto
na vida
saudosa...”.
E assim a vida
despede-se da morte nos quadrantes sertanejos. Um canto triste que ecoa até o
tamanho da saudade que o defunto deixa. Após o romper do dia ainda se ouve a
tristeza entoada e repetida. E assim também nas veredas de despedida até o
fincar da cruz de catingueira como adeus derradeiro.
Poeta e
cronista
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