Por Rangel Alves
da Costa*
Casinha
sertaneja, nas distâncias do fim do mundo, moradia de uma gente que não
diferencia muito do que existe pelos arredores. Uma gente calango, preá,
macambira, xiquexique, catingueira, bicho de moita. Mas também com feição da
lua e do sol.
Como retrato e
moldura, assim é a gente e o seu entorno. Vegetação rala, acinzentada de
secura; árvores tronchas, miúdas, recurvadas pelo peso da seca. E uma gente
magra, ossuda, de feição carcomida e pele abrasada do queimor do dia a dia.
Uma casinha de
barro no meio do mundo, quase caindo, em tempo de despencar de vez. Uma porta
na frente e uma porta atrás, uma janela e um telhado misto de palha, telha e
tábua. Mas nada que protegesse de alguma coisa. Quando o vento queria entrava
por todo lugar, de cima a baixo.
Um quintal sem
cercado, nenhuma galinha ciscando, nada de bicho caseiro. O papagaio se
despediu dessa vida cantando um aboio dolente: Vejo o céu se abrindo e me vejo
subindo. Mas puxam minha asa e não é gente de casa, quem será, quem será?
Preciso subir e a São Pedro pedir pra chuva chegar...
Com o cachorro
aconteceu algo mais triste ainda. A coruja agourenta piou durante três noites
seguidas e no quarto dia o urubu pousou num pé de pau defronte ao casebre. O
coitado do cachorro, já sem força pra correr ou se defender, só viu quando o
bicho preto avançava em sua costela. E foi comido ainda vivo.
A coruja
voltou na semana seguinte e durante muitas noites piou aquela sentença ruim.
Preocupados com o que pudesse acontecer, os donos da casa redobraram as rezas.
E quando o filho reclamou de doença então se viram desesperados. Era a morte no
pio da agourenta. Mas Deus era mais, assim conceberam com maior devoção.
Por duas
noites seguidas fizeram vigília com um saco à mão. Precisavam prender a danada
e acabar com a maldição. Mas ela agourava ora num canto ora noutro, e sempre se
escondendo na escuridão. Foi preciso trazer o oratório pro meio do tempo e
deixar que a fé espantasse a coisa ruim. E nunca mais ela piou ao redor nas
noites escurecidas.
Quando o
menino se deu por sadio, o passo seguinte foi caçar calango pra jogar em cima
da brasa do fogo de chão. Os seus pais olhavam a cena e ficavam em tempo de se
acabar, mas sabiam que ou ele comia aquilo ou seria pior. A seca estava
impiedosa demais, sem comida de mato nem preá pra misturar à farinha.
Quando saía
para caçar, e durante o dia inteiro sem colocar um só corredor dentro do aió, o
sertanejo começava a lançar o olhar pelos arredores das pedras. A esperança era
de que algum cágado surgisse de dentro de uma loca. Não pra matar o bicho, pois
malvadeza demais comer aquilo que se mexe com a panela já fervendo, mas com
outra expectativa.
Ora, todo
sertanejo sabe que quando cágado sai da loca em época de seca é porque trovoada
se aproxima. É dito e certo. Basta que o bicho seja encontrado pelos
descampados ardentes e não demora muita para o tempo começar a mudar. O
horizonte enegrece, as nuvens escuras aparecem e os trovões começam a pipocar.
Mas enquanto o
cágado não aparece e a barra do amanhecer não dá sinal de qualquer chuvarada,
então não há muito a fazer. Mas o verdadeiro sertanejo nunca se entrega, nunca
se dobra aos infortúnios. Reforça sua fé, aumenta sua esperança, se faz cada
vez mais forte num corpo cada vez mais frágil.
É um mundo de
contrastante. Um casebre despencando, fogo de chão apagado, panela vazia e
resto de nada pra matar a fome do menino. Pote com água barrenta, moringa
vazia, nenhum preá que sirva pra enganar a danada.
E do lado de
fora aquele sol imenso, escaldante, iluminando uma paisagem tristemente bela
que parece sumir em miragem. Quando a noite cai surge a lua encantadora com
todo o seu esplendor. E é quando todo o sertão se transforma numa magia
indescritível.
No meio do
tempo, debaixo do sol, o casebre tomado de uma luz tão forte que desnuda todas
as entranhas e deixa à mostra as costelas da miséria. No meio do mesmo tempo,
só que debaixo da lua, aquela casinha envolta pela grandeza do luar. O luar
sertanejo que sempre surge radiante para alentar todo sofrimento.
Poeta e
cronista
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