Por Rangel Alves
da Costa*
O título acima
foi transcrito de um poema de Cecília Meireles, inserido nos versos iniciais de
Motivo: “Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não
sou alegre nem sou triste: sou poeta...”.
Deixa
transparecer que a poetisa vai simplesmente tecendo versos sem qualquer
compromisso sentimental, pois diz que não é alegre nem triste, apenas poeta.
Mas os versos subsequentes demonstram outra realidade: alguém que já conhece
profunda e intimamente a alegria e o sofrimento e que, por isso mesmo, canta
seu verso sem sorriso ou lágrima.
Eis as
estrofes seguintes: “Irmão das coisas fugidias; não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias no vento. Se desmorono ou edifico, se permaneço ou me
desfaço, - não sei, não sei. Não sei se fico ou se passo. Sei que canto. E a
canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo:
- Mais nada”.
Eis a pedra
sentimental. Aquela que permanece assim, parecendo dura e insensível, mas que
intimamente fervilha suas experiências de mundo. Tanto faz que o vento lhe
açoite, que as intempéries castiguem, que o limo queira se arvorar de sua face.
Tanto faz que seja esquecida ou vista apenas como pedra. E tanto faz porque já
experimentada demais nos tempos de brisa e de tempestades.
Ora, tudo como
um livro que já disse em suas poucas páginas e tantas outras acrescidas em nada
irão mudar seu destino. Tudo como uma bacia que começa sedenta, porém chega a
um ponto da borda que já não se importa com a quantidade de água que lhe
despeje por cima. Mas a água que transborda faz descer consigo o mesmo
sentimento que restou lá dentro. Assim, na bacia o vivenciado, a tristeza e o
contentamento, e no derramado a poesia daquilo tão conhecido.
Parece tudo
cansar, extasiar, corroer. Parece tudo fatigado, transbordado, já chegado ao
limite. Eis que mesmo o amor há de ter seus instantes para não perder seu
encanto; a alegria deve ser comedida para não perder seu sentido; a felicidade
há de ser cautelosamente vivenciada para não perder seu fascínio. Mesmo assim
chegará um tempo onde tudo parece já conhecido, experimentado, vivido. E tudo
se transforma numa espécie de tanto faz.
O mesmo vale
dizer com relação às perdas, angústias, dores e sofrimentos. De repente, a
pessoa se reconhece farta de tanto padecimento, de toda amargura. Nesse
estágio, não são coisas miúdas que provocam mais sofrimento, não é qualquer
coisa que aconteça que vá corroer mais ainda. Surge no ser algo como um
cimento, uma impassividade difícil de ser removida.
E assim, por
tanto conhecer a si mesmo e saber que já chegou ao limite de tudo, então se
reconhece suficientemente capaz de retratar sentimentos sem ter de rebuscar
outros motivos interiores. Contudo, os versos que nascem das amargas
experiências nem sempre são alegres ou alentadores, pois revelando sempre as
angústias existenciais. E tais características podem ser observadas em Retrato,
outro poema de Cecília Meireles, que diz:
“Eu não tinha
este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro. Nem estes olhos tão
vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e
frias e mortas. Eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por
esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: - Em que espelho ficou perdida
a minha face?”.
Com Cecília
também indago em que espelho ficou perdida minha face. Ou em qual retrato ou em
qual passado. Juro que não sei. Apenais sei que vivo tentando reencontrá-la.
Mas nem por isso sorrio ou entristeço, afinal de contas não sou alegre nem sou
triste: sou poeta.
Poeta e
cronista
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