Por Rangel Alves
da Costa*
O povo celta
desde muito temia a chegada de estranhos visitantes às suas tribos. E se o
temor se confirmasse, então todas as tradições milenares corriam risco de
sucumbir. E assim porque o guardião do carvalho da sabedoria um dia havia
profetizado que pessoas estranhas ali chegariam empunhando armas para dilacerar
não só as vidas como as raízes célticas.
Filid cresceu
ouvindo tais preocupações do seu povo. De tempos em tempos aumentavam os
rumores da presença de desconhecidos, então o menino percebia que os mais
velhos enveredavam pelas florestas para os rituais e mistérios de proteção. Mas
nada sabia sobre tais ritos, pois apenas uma criança.
Quando
adolescente então Filid procurou, sozinho e sem perguntar a ninguém, o que
aqueles anciãos faziam quando adentravam nas florestas e nestas permaneciam por
dias e até semanas. Já estava pronto para a viagem ao desconhecido quando
sentiu um velho tocar no seu ombro e falar baixinho ao ouvido:
“Certamente
que não me conhece, mas desde algum tempo que miro o espelho do seu olhar e
nele encontro a imagem da força dos nossos antepassados. Permaneci em silêncio
e até lancei murmúrios ao vento acerca do que o destino aguardava ao nosso
povo. E como resposta ouvi que um menino se faria homem, e o homem se faria um
Druida-Celti para ser o mestre do panteão e protetor de nossas raízes. E ontem
percebi que o espelho do seu olhar precisa avistar o que está além e dentro da
natureza. Por isso sei que é chegada a hora. E por isso também que estou aqui
para lhe acompanhar até dez passos adiante da floresta, o caminho do
conhecimento e da vida. E também trago uma surpresa para você Druida-Celti.
Então vamos, queira me acompanhar sem nada temer”.
Caminharam por
descampados, córregos e bosques, até chegar às margens de uma floresta densa e
escurecida. Não havia vereda aberta nem qualquer caminho que apontasse uma
direção, apenas grandes árvores ladeadas por labirintos de galhos, folhas e
cipós. O jovem Filid então quis saber se conseguiriam chegar a algum lugar
diante daquela mata fechada. Mas não haviam caminhado nem dez passos quando
percebeu que o velho havia sumido, simplesmente desaparecido como num passe de
mágica.
Olhou de lado
a outro tentando avistá-lo e quase nem percebe que sua mão direita agora
carregava uma espécie de bastão. E aquele era exatamente o bastão que o velho
levava também na mão direita. Contudo, a surpresa maior se deu quando ergueu o
cajado em direção aos olhos e de repente uma força estranha fez abrir uma
imensa clareira na floresta. E ali avistou dezenas de anciões reunidos ao redor
de uma águia esculpida num tronco, mas que, ao avistá-lo, rapidamente
levantaram para se curvarem em reverência e depois desaparecerem numa bruma
espessa.
Em seguida a
própria névoa o envolveu e viu diante de si ser aberto o Livro dos Mistérios:
Página a página sua história num só instante. Com o cajado à mão, abrindo
caminhos no impenetrável, fazendo surgir a luz na escuridão, fazendo cessar a
voracidade das tempestades e vendavais. Mas tudo em obediência a deuses da
floresta, divindades entronizadas no carvalho, no pinheiro e no abeto, dentre
tantas outras árvores. Todos os deuses com seus altares nos arvoredos e
bosques. Acima pássaros de fogo e lâmina, e animais desconhecidos ao redor. E
ele ouvindo o clamor do seu povo, aconselhando e remediando, ensinando a cura
do corpo e da mente, lutando pela preservação dos ritos e crenças.
Filid retornou
da floresta se sentindo ainda jovem, com o mesmo espírito dos momentos atrás
que ali chegara junto com o velho, mas não sabia, mesmo diante do Espelho do
Tronco, que mais de cinquenta anos já haviam se passado naquele encontro com o
livro da natureza, naquele panteão envolto em brumas e ensinamentos. Não sabia
ele que dali em diante seria aquele Druida-Celti profetizado. Mas não precisava
saber, vez que agora transformado no Senhor dos Bosques.
Ao retornar e
se encaminhar às tribos para colocar em prática seu aprendizado, ao longe viu
algo verdadeiramente estarrecedor: o seu povo já se preparava, nos escondidos
da vegetação, para enfrentar uma grande legião romana que se aproximava sedenta
de sangue. Gritar para que recuassem não adiantaria, pois todos já tomados do
ímpeto do enfrentamento e confiantes nas misteriosas forças célticas para
derrotar inimigos. Então rapidamente se transformou num grande pássaro e voou
na direção do seu povo. Porém tarde demais, restando-lhe pousar no alto de um
pinheiro para chorar a dor do instante.
Então Filid, o
Druida-Celti, Senhor dos Bosques, recordou que aquilo também estava escrito no
Livro dos Mistérios. Os deuses da floresta se curvariam diante da lança, do
arco e da lâmina, assim estava escrito. Porém não significaria o fim, mas
renascimento. E assim, depois de avistar os campos banhados de sangue com
centenas de mortos, e todos do povo celta, Filid retomou seu cajado e o apontou
naquela direção. E uma névoa densa encobriu todos os mortos.
Estavam todos
renascidos para a continuidade da vida, dos mistérios e das tradições célticas.
Mas o Império Romano jazia morto. Assim o desejo de Filid, o Druida.
Poeta e
cronista
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