Por Rangel Alves
da Costa*
É da lavra de
Machado de Assis este sutil e realista reconhecimento: “O mais feroz dos
animais domésticos é o relógio de parede. Conheço um que já devorou três
gerações da minha família”.
E não apenas
feroz e devorador, mas também silenciosamente ameaçador, numa mudez que só
desperta para dizer que tem pressa para seguir adiante e que deseja levar
consigo qualquer um que não lhe dê atenção.
Talvez apenas
uma parede, talvez apenas um relógio antigo dependurado, lentamente pulsando
sua temerosa existência. Foi colocado ali apenas para marcar as horas, para
lembrar os compromissos, para que ninguém se esqueça de sua presença, pois tudo
dele depende.
Antigo,
herança de gerações, imenso e parecendo tão solitário e esquecido. Com caixa de
madeira de lei, o verniz parece esconder as rugas da existência. Ao longe
ninguém percebe seu passo, não ouve seu pulsar metódico, sequer ouve sua voz
maior quando o ponteiro chega na hora exata.
Mas qual hora
exata? No relógio de parede, qualquer hora é a hora exata, principalmente para
marcar um tempo que se vai ou que já se foi. Ou despertar a atenção para o
instante seguinte. Mas também para marcar o momento exato da despedida de
alguém. Eis a morte sempre marcada no relógio.
Na mesma
parede, ao lado e ao redor do relógio, os muitos e invisíveis retratos daqueles
que já partiram num determinado instante do ponteiro. Retratos antigos,
molduras de outros tempos, feições ainda sorridentes ou entristecidas, olhares
mirando o presente. E somente os retratados para saber quem o ponteiro procura
para chamar.
O relógio
percorre incansável, com inexplicável vigor. Desde mais de cem anos que já
batia no mesmo ritmo, desde antepassados distantes que já marcava o tempo de
tudo. Inexplicavelmente nunca para, nunca cansa, nunca se torna exaurido de sua
função. Diferentemente ocorre com aqueles que passam diante de sua face e
apenas se preocupam em seguir adiante.
Talvez o
relógio tenha um segredo a ser revelado. Acaso alguém se demorasse mais diante
dele, o olhasse com mais atenção e levasse o ouvido até jutinho dos ponteiros,
certamente que ouviria algo além daquele quase que silencioso pulsar. Ouviria o
segredo e o mistério seria revelado.
Mas qual
segredo e qual mistério? Segredo de relógio antigo é o mistério que carrega
para continuamente sobreviver, marcar o tempo quase que eternamente. E o
mistério está no seu jeito de percorrer a estrada, de caminhar lentamente para
marcar o tempo.
Na revelação
do segredo e do mistério estaria também o percurso do homem. Talvez não só o
relógio pudesse ter existência tão prolongada. Contudo, o homem teria de
aprender a viver segundo o caminho do tempo. Há certeza de que chegará adiante,
de que avançará na marcha dos anos, mas sempre dando um passo de cada vez.
O relógio
possui ponteiros para segundos, minutos e horas. E cada um vai passando de
estação a estação, avançando nos segundos, nas horas, nos dias, nos meses, nos
anos, nos séculos. E não cabe ao homem, escravo que é do tempo, querer
ultrapassar estágios na sua caminhada.
Porque não
presta atenção ao relógio, porque não guarda um momento diante de sua presença
e procura desvendar seu segredo e mistério, o homem por ele vai sendo devorado
sem perceber. Eis que cada segundo do relógio é um fio da existência humana que
se desfaz. E vai corroendo tudo, lentamente, até que o ponteiro marque o fim.
O relógio
continua na parede, e assim continuará com as próximas gerações. Mas o homem,
que não passa de um segundo na vida, estará somente no retrato empoeirado que
ele mesmo vai emoldurando na sua breve caminhada.
Poeta e
cronista
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