Por Rangel Alves
da Costa*
Remedios, a
Bela, certamente desceu dos céus como subira vestida em flor virginal, para
beijar na fronte do seu criador. E aquelas borboletas multicoloridas que
entravam por sua janela e a acompanhavam onde estivesse, agora voejam tristes
velando a imortalidade: Gabriel García Márquez. E toda Macondo, todos os
Buendía, descem de suas distâncias para o último adeus ao romancista. E a
solidão agora transformada em lágrimas, e ao lado do livro aberto, aquele de
Cem Anos de Solidão, outro livro escrito: Cem Anos de Tristeza.
Cem anos ou a
eternidade. A notícia triste não modifica em nada a imortalidade de quem se fez
eterno através da genialidade literária. Mas o fato ecoa, eis que aos 87 anos,
na Cidade do México, vitimado por complicações decorrentes de um câncer,
faleceu nesta quinta-feira, dia 17 de abril, o escritor colombiano Gabriel
García Márquez. Gabo, como também era conhecido, é autor do mundialmente
aclamado Cem Anos de Solidão, romance que lhe garantiu o Prêmio Nobel de
Literatura em 1982. Antes disso, em 1972, já havia sido laureado com o Prêmio
Internacional Neustadt de Literatura.
O jornalista
que não quis ser advogado e se tornou escritor, e novamente jornalista,
romancista e engajado politicamente, acabou elevando a literatura
latino-americana ao patamar das grandes expressões mundiais da chamada escola
do realismo fantástico. Nesta vertente literária, a realidade ficcional é
entremeada por elementos narrativos tão inusitados, exuberantes e até
desconexos, que mais parece um jogo ilusionista impulsionando a história.
Márquez não
gostava de ter sua obra reconhecida como realismo mágico ou fantástico, mas
apenas realista, pois fruto de suas memórias. Afirmava que suas vivências
familiares estavam todas refletidas nas suas obras. Contudo, não há como deixar
de reconhecer o esmero fantasioso e inusitado no seu genial Cem Anos de Solidão.
Ora a saga da família Buendía, desde os tempos imemoriais de Macondo, é relato
maior dessa ímpar força expressiva.
Ademais,
deve-se reconhecer que Márquez fazia parte de uma escola latino-americana onde
o realismo fantástico servia de pano de fundo para narrar, sem deixar rastros
facilmente reconhecíveis, as atrocidades dos regimes ditatoriais que se
espalhavam no continente. Daí o uso de metáforas, de situações impensáveis de
acontecer, de uma realidade transtornada onde as pessoas parecem forçadas a viver
a normalidade diante de fantasias e incoerências.
Mesmo tendo
escrito outras obras fundamentais na literatura mundial, dentre os quais
Ninguém Escreve ao Coronel, Crônica de uma Morte Anunciada, O Amor nos Tempos
do Cólera, O Outono do Patriarca e Memórias de Minhas Putas Tristes, a
genialidade de Márquez eternizou-se mesmo com a descrição daquela
família-pátria na distante Macondo-nação. Assim, muito mais que uma genealogia
familiar, com enredo alicerçado nas gerações dos Buendía, sintetiza uma pátria
que nasce e morre sufocada pelos seus próprios fantasmas. Em Cem Anos de
Solidão, o que se tem é a própria América Latina espoliada pelos regimes
ditatoriais.
Cem Anos de
Solidão conta a história de sete gerações da Família Buendía na fictícia e
surreal aldeia de Macondo, desde a família do patriarca José Arcadio Buendía e
sua esposa Úrsula Iguarán. Numa geração que vai incluindo filhos, netos,
bisnetos, daí em diante, mas sempre com a presença da matriarca. Fatos
marcantes e fantásticos na trama podem ser percebidos, além da longevidade de
Úrsula; na maldição em Aureliano que nasceu com rabo de porco; na morte ao
mesmo tempo dos irmãos gêmeos Aureliano Segundo e José Arcadio Segundo e o
enterro de um na tumba do outro; na bela Remedios e sua pureza da alma, amiga
das flores e borboletas, e que um dia simplesmente subiu aos céus como um anjo.
Ora, é um
mundo do bem e do mal, onde acontecimentos fantásticos servem como metáforas
para dizer sobre seres humanos que se veem impossibilitados de cumprir seus
destinos, vez que estes sempre estão na dependência de outras forças. E em tudo
a voz de Márquez ecoando a solidão do povo latino-americano diante das forças
opressoras do poder ilegítimo. Pretendeu retratar as aflições de sua gente, mas
acabou revelando a existência de um mundo que se reproduz na solidão de seus
habitantes.
Talvez Márquez
fosse o último da geração dos Buendía. E por isso mesmo essa linhagem familiar
alcançará a eternidade. Aqueles cem anos de solidão passarão a ter a mesma
idade que a obra do genial escritor. Agora como tristeza, mas não pelos seus
personagens que ainda são avistados nas teias da ilusão e da fantasia, e sim
pela última e pranteada viagem. Agora está em Macondo, ou noutro lugar qualquer
onde possa transformar a realidade numa magia somente por ele descritível, onde
possa criar sonhos que nunca foram sonhados.
Márquez fez o
Cigano renascer dos mortos e uma devotada aos braços amados morrer completamente
virgem. Até a morte foi reinventada por ele. E agora inventou a eternidade.
Poeta e
cronista
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