Por Rangel Alves
da Costa*
Recordo bem
aqueles retratos emoldurados em cima do móvel na sala de estar. Dois retratos
diferentes, em preto e branco, mas que ganharam coloração pela maestria
artesanal do artista da fotografia. Coloridos artificialmente, em pinceladas
realçando as faces, receberam também molduras douradas, se abrindo ao meio.
Meu pai e
minha mãe. Jovens, bonitos, ele mais sério e ela com sorriso sempre cativante.
Não sei aonde, mas o porta-retrato ainda deve estar guardado em algum lugar.
Retratos são diferentes das pessoas, pois têm o dom de permanecer quando os
retratados já não estão mais aqui. As feições avistadas agora servem à ilusão
da presença, ainda que presentes estejam nos corações familiares.
Também recordo
dos retratos de meus avôs Dona Marieta (Mãeta) e Teotônio Alves (Pai China)
numa das salas. Um dia um velho restaurador de fotografias bateu à porta de
casa e minha mãe pediu que transformasse duas pequenas fotografias num retrato
emoldurado de parede. Tempos depois os dois surgiram em tamanho grande, coloridos,
adornados em madeira antiga.
Nas paredes ou
por cima dos móveis, as fotografias e porta-retratos ganham significação
especial. Tantas vezes surgem como meros enfeites, como instantâneos familiares
para serem relembrados a qualquer momento, mas o tempo acaba cuidando de
transformar os retratos em saudades e recordações. E dolorosas quando aquelas
pessoas somente podem ser avistadas naquelas molduras.
De repente, e
a fotografia é o único sorriso que resta. E quanto mais o tempo passa mais
aqueles retratos parecem ganhar vida própria. O sentimento de ausência, aliado
ao imenso desejo daquela presença, acaba provocando um relacionamento tão
afetuoso que nem nos instantes possíveis era tão corriqueiro. É como se
quisesse revelar na fotografia aquilo que restou incompleto noutros instantes
da vida.
Talvez os
retratos antigos também chorem, talvez sintam as mesmas saudades, talvez
queiram dar os mesmos abraços. A vidraça amarela embaça o olhar marejado, a
moldura desgastada acaba escondendo a feição angustiada e querendo expressar
além daquela névoa do tempo. E quem olha também retrata o quanto dolorosa é a
distância de um olhar: o infinito entre uma presença e uma ausência.
Os álbuns, os
escritos, as relíquias tudo serve como recordação, porém nada igual a avistar
um sorriso conhecido na parede, um olhar afetuoso em cima da estante, uma
feição tão amável em cima de um móvel qualquer. E verdade que ninguém olha num
repente e deixa para trás a saudade. A vontade que se tem é de conversar, de
perguntar como vai, de falar coisas amorosas. E também de abraçar e revelar
todo o amor sentido.
Silenciosamente
converso com os meus. Há um retrato de meu pai acima de minha estante e uma
fotografia de minha mãe na mesma estante, ao lado de uma Bíblia. Alcino está
sorridente na porta de uma casinha sertaneja. Dona Peta também sorridente como
sempre se mantinha em vida. E é difícil acreditar como dois sorrisos conseguem
transformar em lágrimas os olhos daquele que olha. E sente.
Os retratos
são, assim, nossas memórias visíveis, nossas saudades estampadas, nossos
encontros distantes. E servem não apenas para o diálogo com os antepassados
como para o entendimento de nossas próprias transformações. Também nos sentimos
nostálgicos e saudosos de nós mesmos. As feições retratadas que não voltam
mais, olhares e sorrisos que não são mais os mesmos.
Diferentemente
do que ocorre quando sentimos fisicamente o tempo passando, os retratos possuem
o dom de rejuvenescer na saudade, na lembrança de como quase tudo era
diferente. E acabamos percebendo que nos dividimos em três: aquele que está
dentro de nós, o que está refletido no espelho e o da fotografia. E o temor de
desbotar ainda mais o que está dentro de nós.
Poeta e
cronista
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