Por Rangel Alves
da Costa*
A vastidão do
mundo sertanejo guarda diversos outros mundos nas suas entranhas. De sua
imensidão, outras dimensões se escondem ou se realçam nos seus quadrantes.
Aquilo que se vê não corresponde à realidade acabada, de modo ser impossível
conhecer o todo pelo que se tem emoldurado no olhar. Desse modo, muito existe
que permanece desconhecido da visão primeira.
Assim teria de
ser porque há muitos sertões num só. Neste sentido, o sertão histórico e
geográfico, com sua feição característica de heróis e espinhos; o sertão
aparente, aquele mesmo avistado e certamente não compreendido pelo forasteiro;
o sertão terra, chão ressequido, vivenciado pelo seu habitante, o sempre bravo
sertanejo; e ainda outros sertões num mesmo sertão.
Suas
características são inconfundíveis. Falar no sertão é pensar nas contínuas e
duradouras estiagens, na terra esturricada e no bicho e no homem faminto e
sedento, na pobreza se alastrando pelos rincões, no sol imenso e escaldante e
na lua poeticamente festejada. E também o sertão de Lampião, do Padre Cícero,
do Conselheiro, bem como dos tipos próprios da terra: vaqueiros, ribeirinhos,
agricultores, sanfoneiros, uma gente de fervorosa religiosidade.
Mas não se
pode esquecer o sertão de riquezas inigualáveis, da terra que mesmo árida se
plantando tudo dá; do povo cativante, humilde e trabalhador. Não se tem mundo
afora manifestações culturais tão autênticas quanto as nordestinas. O fole
ainda ronca; o sertanejo ainda corre em vaquejada; sua arte de bordado, couro,
madeira e barro, é festa para o olhar. E também a cantoria matuta, o aboio, a
toada, o repente.
Tudo isso
ainda existe. Não como antigamente, mas ainda é possível encontrar um sertão
ainda não completamente desfigurado pelo progresso arrebatador nem pelos
modismos que a tudo descaracteriza. Mas é preciso correr chão para localizar o
que ainda resta de mundo sertanejo, de entardecer vivenciado no cheiro do café
torrado, nas cadeiras de balanço pelas calçadas, nos velhos amigos proseando
debaixo do pé de pau.
Contudo, há um
mundo sertanejo, de presença constante dentro de outros mundos empobrecidos ou
mais desenvolvidos, geralmente esquecido tanto pelo forasteiro como pelo
próprio homem da terra. Esse mundo, sempre entremeado de pobreza, distância e
desolação, é lugar e repouso daquilo que resta do autêntico homem da terra, do
legítimo sertanejo com sua feição maior: o ser que ao mesmo tempo é grão de
terra e bicho do mato.
Não é nas
beiradas de estradas e caminhos largos que se chega a esse mundo. É preciso
cortar vereda, adentrar no chão pedregoso e espinhento para se avistar a
tapera, o casebre, a casa erguida no cipó e barro. Ou mesmo casa de taipa com
janelas e porta de madeira. Mas sempre reconhecida pela solidão do lugar, pelas
poucas moradias existentes ao redor ou mesmo pela única habitação em meio a
mataria ou descampado.
Ali, com sua
família, vive o autêntico sertanejo, o habitante desse outro mundo desconhecido
por muitos. O homem até que pode ser conhecido aonde chegue, seguindo estrada
ou na feirinha semanal, mas é no seu peculiar modo de viver, na sua vivência de
quase enclausuramento e na distância que mantém dos afazeres dos centros
urbanos, que reside toda a diferença no seu jeito de ser e partilhar de seu
meio.
Esse outro
mundo sertanejo também possui características inconfundíveis. O homem vive para
sua terra, seu pedaço de chão, seu pequeno rebanho ou bicho de quintal.
Geralmente não há eletricidade na sua moradia nem água encanada; não há
qualquer comércio por perto nem posto de saúde. A sobrevivência tem de se
bastar com os frutos da terra, com o adquirido na feirinha semanal, ou com o
quase nada que geralmente dispõe.
E é um mundo
solitário porque distante, porque afastado de outras moradias, com poucos
conhecidos ou viajantes que por ali chegam ou fazem passagem. Os dias de
mesmice são suportados sem que o sertanejo sequer se lembre da existência de
cidade ou povoação mais adiante. Ali é o seu mundo, e pronto. É onde conversa
com a natureza, conhece os mistérios do tempo, se torna amigo inseparável de
cada toco de pau e de cada bicho.
Amanhece antes
de o galo cantar e toma seu café de dormida no primeiro brilho da lua. Tem
sempre um radinho de pilha como companhia e uma prece na boca toda vez que olha
para o horizonte desesperançoso de chuva. Ajeita no beiço seu cigarro de palha,
entorna dois dedos de casca de pau e chiqueira a vida como o rebanho maior que
pode dispor. De vez em quando lança mão do berrante e entoa uma saudade imensa.
Mas não a
saudade de outro lugar ou de alguém. E sim a saudade do próprio sertão. Eis que
já muito diferente daquele sertão de seus pais, seus avôs e de todos aqueles
que antes deles vieram.
Poeta e
cronista
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