Ana Floriano
Gabriel
Villela recheia de requinte, referências e cor o tradicional espetáculo popular
Auto da liberdade, encenado em Mossoró com 86 atores amadores
Apoenan
Rodrigues ? Mossoró (RN)
Armadas com panelas das quais tiravam um som ensurdecedor, as mulheres de
Mossoró, cidade do interior do Rio Grande do Norte, a 270 quilômetros da
capital Natal, promoveram, em setembro de 1875, um estardalhaço que entrou para
a história da região. Fizeram de refém o escrivão de paz e em praça pública
rasgaram o livro e os papéis que recrutavam os homens mossoroenses para lutar
na Guerra do Paraguai. Ana Floriano, líder do movimento que ficou conhecido
como Motim das Mulheres, chegou a empunhar um espeto de ferro para defender a
redação do jornal local da invasão dos mandantes de um político que queria
impedir a publicação dos fatos. Nascia o mito da valentia das fêmeas de
Mossoró. O ocorrido ficou para sempre registrado na memória dos habitantes e
nas páginas dos quase quatro mil títulos de livros publicados sobre este e mais
três eventos que marcaram a vida da cidade nordestina. Há cinco anos, o Motim
das Mulheres integra o espetáculo popular Auto da liberdade, de
Crispiniano Neto, que neste ano, com um investimento público de R$ 1,5 milhão,
ganhou livre adaptação do diretor mineiro Gabriel Villela em quatro encenações
ocorridas na semana passada. Desta vez, porém, a peça ganhou um precioso
incentivo à reflexão pelo requinte das referências e da contraposição de
idéias. Não foram exatamente assimiladas pela população. Mas certamente vão
despertar questionamentos.
No momento de maior impacto, depois de a narradora Tony Silva – uma atriz local
que precisa urgentemente ser resgatada para dar passos mais largos na carreira
– rememorar o motim, dando ênfase à ousadia de saias, entra em cena uma legião
feminina cantando Mulheres de Atenas, de Chico Buarque. Todas empunham
como escudos bacias de lavar roupa. Para uma sociedade que sempre incentivou
suas filhas a só falar “xô galinha, pra dentro crianças e sim senhor”, a imagem
contrária da mulher libertária momentos antes exposta encheu de ironia e
provocação a arena de 23 metros, coberta de areia e erguida à maneira dos
ancestrais teatros gregos. Não houve silêncio. Apenas um mínimo de perplexidade
acobertada por aplausos calorosos causados pela beleza plástica do grupo em
sincopada coreografia de batuque nas bacias, sob orientação da bailarina Clézia
Barreto. “Essa geometria, essa mandala, obriga as pessoas a exercitarem o
cérebro”, acredita Villela. O secretário de apoio à preservação da identidade
cultural, Sérgio Mamberti, presente à exibição, vai além. “Todo trabalho de
arte tem um caráter de mistério. É assim que se dá condições de desenvolvimento
de linguagens. A escolha do Gabriel foi bastante apropriada.
Acostumada à grandiosidade das encenações passadas – dois anos sob a visão
cordelista de Amir Haddad e outros dois sob a interpretação operística de massa
de Fernando Bicudo –, a população desta vez foi pega de surpresa diante da
concepção artística do diretor, auxiliado por uma azeitada equipe. Foram dois
meses de árdua preparação de atores amadores, infelizmente pouco familiarizados
com a avalanche de informação trazida por Villela. “No início, distribuí várias
apostilas mostrando o porquê daquelas cenas, mas não funcionou”, lembra o
diretor. “Depois, concluímos que a cultura da oralidade tem mais habilidade
para encantar os cidadãos. E como eles guardam uma capacidade incrível para
contar casos, nossa brincadeira foi realizada contando historinhas.” E haja
histórias para explicar a relação entre os principais episódios de Mossoró – o
motim feminino, o fim da escravidão cinco anos antes da Lei Áurea, a
resistência vitoriosa ao cangaceiro Lampião e o primeiro voto feminino – e o
mito grego de Prometeu, a Revolução Francesa, a Inconfidência Mineira, a
travessia do Mar Vermelho pelos hebreus e a tela Guernica, de Picasso.
Liberdade – O texto de Crispiniano Neto, como o próprio título indica, é
uma elegia aos principais feitos libertários da cidade, escolhidos para o Autopor
uma comissão de historiadores locais. “Minha poesia sempre teve compromisso com
a liberdade e a democracia”, avisa Neto, um agrônomo por formação, que hoje
trabalha como assessor do diretor da Escola Superior de Agricultura de Mossoró
e mantém uma coluna num jornal e dois programas de rádio. As referências
buscadas por Gabriel Villela não traçam exatamente uma reciprocidade histórica
com os episódios. Abordam um conceito muito mais amplo de liberdade, palavra
tão cara aos mossoroenses. Villela chacoalhou conceitos. Se não foi entendido,
pelo menos deu de presente um belo espetáculo visual. Parte desta beleza veio
do esforço do assistente de cenografia e criador de adereços, o paulista Márcio
Vinicius, e da também paulista Monica Pompêo, assistente de figurinos.
Ambos organizaram mutirões e oficinas de criação com os artesãos da cidade e se
surpreenderam com a capacidade criativa das pessoas. “Eles absorveram a
linguagem teatral com uma rapidez impressionante”, conta Vinicius. No total,
trabalharam 32 profissionais. As quase 90 máscaras impressionam pelo acabamento
vistas até de perto. Com bases pré-moldadas e folheadas a ouro, ganharam
adereços feitos com terra, areia, serragem, folhas trituradas e palmas de
carnaúba. Nada precisou ser refeito. O mesmo aconteceu com os figurinos
confeccionados com toalhas rendadas de mesa, coloridos fios de rede, crina de
cavalo e rendados diversos, a maior parte trabalhada com brocal. “Minha paixão
foi fazer a composição de cores e ver a avidez com que eles aprenderam. Aconteceu
uma troca muito legal”, diz Monica.
Pedras – Um cenário minimalista projetou um portão medieval revestido com
chapa de ferro para a entrada e saída dos coros ao modo do teatro grego. À
volta da arena, pedras feitas de ferro e tela de galinheiro lembravam ruínas
que transformaram em outro mundo a Estação das Artes Elizeu Ventania, antiga
estação ferroviária da cidade. Mais de 400 candidatos compareceram à audição.
Destes, saíram 61 atores e 25 bailarinos. A única profissional é a atriz
mossoroense Tony Silva, que imprimiu deboche e ironia exatas às marcações do
diretor. “Quando ele apresentou o figurino, entendi que eu era um bufão, então
tive toda a liberdade do mundo”, confessa Tony. Aos amadores do espetáculo que
quiserem seguir carreira vale uma dica: mirem-se no exemplo desta mulher de
Mossoró.
Fonte:
http://www.istoe.com.br/reportagens/detalhePrint.htm?idReportagem=14017&txPrint=completo
Enviado pelo pesquisador José Edilson de Albuquerque Guimarães Segundo
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