Por: Jair Eloi de Sousa
Parecia uma
manhã qualquer de verão, nuvens carregadas, com tom e forma de nimbos* em
choro. Um ritual a derramar lágrimas em sincronia rápida, ameaçando antecipar
as águas de março. Navegava na reta tabajara, terras de Macaíba dos Mesquitas,
deixando a silhueta do mar na rota do Sertão. De repente o acenar de mãos,
vindicando uma carona. Fui acorde ao gesto, parando o veículo. E que surpresa!
Era novamente a incansável Mellie. Antiga assistida da banca advocatícia,
quando menina, nos anos oitenta. Habitante da rua 1º de maio, em Santa Cruz do
Inharé. Logradouro de vida cangaceira e de venda da carne humana. Cabrocha de
olhar maduro, profissional, dissera que perdera ao “quebrar da barra” uma
carona amiga, e ali estava a retornar para sua cidade. Disse ser assídua no
trecho, e não raro dissipa o tempo e a noite por inteira, num ziguezague
infernal em atendimento aos seus clientes caminhoneiros, que como diriam os
margeantes da ribanceira do Rio Piranhas: é uma “verdadeira espoleta de tear,
que no seu vai-e-vem maquinal, esquece de tecer a rede e passa a brilhantina
nos incautos”.
Confesso que
não foi difícil uma incursão inicial, sobre a vida dura que leva aquela
rapariga, Oficiando nas trevas, noites escuras, assistindo gente desconhecida e
sem caráter ou com mau caráter. A solidão dobrada pela saudade dos filhos que
ficaram em casa, o constrangimento de se furtar de forma compulsória ao
convívio daqueles, e se ofertar a seres animalescos por trinta dinheiros. E
sendo aí, perguntei-lhe; se mesmo naquele motel ambulante, tinha saudade do seu
primeiro amor? Em resposta seca, curta, sem nenhum esmero, disse-me: “não tive,
não guardo lembrança. Era apenas uma menina de rua, enquanto estava com fome,
mas sempre retornava à casa materna, quando o sol abraçava à linha do
crepúsculo e era chegada a hora do Ângelo. Não tinha o costume de ir à pracinha
do centro à noite, onde brotava os queixumes, pois, lhe faltava roupa. Até que
tentou certa vez, e ao se aproximar da “fina flor”, foi escarrada. Era mendiga,
retrato da plebe, em razão de que, estava confinada para sempre no gueto da
miséria”.
Finalmente
indaguei-lhe, e a cena primeira? Não titubeou, dissera de chofre, “era ainda
menina, um taxista nas horas vagas, de nome Zorba, com Praça em Santa Cruz,
homem de idade meã, de leveza cristalina na sociedade, a usara da forma mais
vil. Tinha a praxe de dar-lhe esmola todas as manhãs, e num certo dia,
cumprindo seu instinto bestial, a desflorara ainda criança, com apenas onze
anos de idade. Eis o dilema, avisar à mãe da tragédia e perder o freguês que
todas as manhãs lhe dava esmola. Teve lugar o silêncio sepulcral.
Mas, a estação
do cupido chegou. Após a tragédia infantil, o primeiro namoro brotara com
quatorze anos. Era um mestiço campesino, que não tinha a malícia do jovem da
cidade. Gente de parte do clã de Chico Caetano, criador de gado vacum, habitava
às margens do Rio trairy, num rincão chamado “Caiçarinha do Carneiro”. As
coisas iam bem, sem nenhum atropelo, até quando um comparsa do desflorador, que
também investira com incursões “cabidas”, porém de resultados infrutíferos,
delatara ao seu namorado. Era a terceira lua do mês de junho, o festeiro São
João e o casamenteiro Santo Antônio, aguardavam as homenagens devidas na
fogueira. As noivas desiludidas, que viram passar o maio e as lembranças
perdidas em “brumas do passado”, aguardavam as súplicas feitas, como última
cidadela para se acasalarem. Foi então que a menina Mellie viu seus planos
“amarelarem”. Indagada pelo seu noivo, do fato de não mais ser virgem, assegurada
por aquele de que não mudaria seus planos, disse-lhe ser verdade. Ledo engano,
de pronto recebera a censura daquele, Que lhe disse: dali para frente seria
diferente. Foi a “gota d´água” para a relação, alí morrera a possibilidade do
mundo ganhar uma dona de casa honesta, e como reverso da medalha, ter que
conviver doravante com uma dama da noite.
O noivo na
primavera seguinte celebrou pacto com outra, casamento marcado, mesmo assim em
encontro furtivo e de cenário apelativo, dissera-lhe que se lhe ofertasse o
perdão e o quisesse a nubente seria ela. Não logrou êxito aquele. Ao silêncio
sepulcral, guardado a sete chaves durante tantos anos pela rapariga, tomara
lugar um constrangimento para com as regras convencionais, que nunca mais
devolveria o álibi de senhora a Mellie, e sim de prostituta assumida, ou de uma
grande dama de aluguel”.
Mellie tem
quatro filhos de pais diferentes. Aos trinta e dois anos, perdeu a maciez da
pele, a garra de fazer plantão diariamente cedeu lugar à dama envelhecida,
carcomida em parte pela gelidez das madrugadas, à beira da estrada. O ritual de
fazer prazer na estrada se repete de quatro em quatro dias. Já tem clientela à
domicílio, recebe em sua casa, um ancião de oitenta e dois anos, ex-combatente,
conhecido de nome João devoto, que paga o aluguel, luz, água e lhe fornece uma
feira mensal, a quem diz gostar, porém sem esconder um riso de hipocrisia, e de
quem tem uma filha de dez anos.
Na despedida,
indagação, como se fosse um bom e cuidadoso jornalista: Como se cuida? Respondeu
a rapariga: “não me desprendo da velha camisinha”. “Mas, estou cansada de ser a
“dama da noite”. O palco nunca foi iluminado. Quando muito percebia, o lampejo
dos que anonimamente cruzavam, e que me ofertaram o direito à discrição e ao
silêncio nessa relação, guardando o mistério de sobreviver nessa selva de seres
desconhecidos”."
Enviado pelo o professor e pesquisador do cangaço Francisco Borges de Araújo - Jardim de Piranhas
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