Por: Rangel Alves
da Costa(*)

CORONEL TITÓ E A REVOLTA CAMPONESA
Boanerges Titó
é o que se poderia chamar de velho coronel linha dura, de imutáveis decisões,
cuja palavra deveria ser tida como sentença de último grau. Por isso era tão
temido por seus desafetos e principalmente pelos que a ele viviam submissos. E
eram muitos, não desafetos, pois já havia mandado tocaiar e derrubar a maioria,
mas dependentes, subordinados. Quase escravizados.
Dono de
grandes latifúndios na região do Mundaréu, o Coronel Titó, como gostava de ser
nomeado, chamava para si todo o poder regional, tanto político como econômico.
Mais de trinta famílias encontravam moradia e trabalho em cada uma das três
imensas propriedades, fora as dezenas de camponeses que se sustentavam
prestando serviço nas terras do grande senhor. Assim, era um mundo de gente sob
o comando do sempre desgastado terno branco de linho.
Do suntuoso
casarão numa das propriedades, comandava a vida daquelas pobres famílias e dos
tantos trabalhadores assalariados dele dependentes para sobreviver. Todos
padecendo da miserabilidade desde pequenos, agora adultos tinham de submeter às
esmolas vis oferecidas pelo coronel. Sim, porque eram assalariados sem receber
salários. Auferiam apenas aquilo que o homem do terno branco bem entendesse.
Ademais, todas
as famílias que moravam nos barracos espalhados pelas propriedades estavam
obrigadas a comprar ali mesmo o que necessitassem. Para tal, em cada fazenda
havia um armazém farto de suprimento, de carestia e de cadernos para ir
anotando as dívidas impagáveis dos míseros trabalhadores. E também era ordem do
coronel que cada trabalhador não residente no lugar, mas que lhe prestasse
serviço, estava obrigado a deixar no armazém metade do recebido.
Mas tudo de
carestia desenfreada. Um pedaço de carne seca custava o olho da cara, uma barra
de sabão valia uma preciosidade, uma garrafa de pinga levava quase todo o
salário. O problema é que sentiam alguma coisa diferente nas contas que só
aumentavam, ainda que todo mês um dos jagunços passasse fazendo a cobrança, e
sobre nada podiam reclamar. Dois trabalhadores que reclamaram e disseram que
não suportavam mais viver daquele jeito, não demorou muito e foram encontrados
formigando dentro da mataria. Os urubus espalharam o aviso aos demais.

A coisa
começou a mudar quando os assalariados resolveram não mais deixar metade do
recebido no armazém. No mesmo dia, mais de vinte homens, moradores ali mesmo de
uma das fazendas, invadiram o armazém e rasgaram todos os cadernos com contas
velhas e novas. O vendedor gritou pelos jagunços, mas quando três deles
correram naquela direção com armas em punho, foram recebidos com canos
apontados de todos os lados. Só saíram vivos da refrega porque correram com a
incumbência de dar um recado ao coronel: Ninguém era escravo pra viver debaixo
de bota de salafrário. Dali em diante exigiam respeito.
Ao ouvir o
recado, o Coronel Titó deu um salto da cadeira de balanço que assustou a
capangagem. Vermelho como um tomate, botando fogo pelas ventas, se esforçava
pra esbravejar e não conseguia. O fôlego só voltou depois que virou de uma
golada só um copo de cachaça. A primeira coisa que disse foi que todos os
jagunços se reunissem, dali e de outras propriedades, para mostrar àqueles
safados quem era que mandava ali.
Mas no
instante ouviu um barulho que lhe chamou atenção. Mandou ver o que era e o cabra
voltou dizendo que o casarão estava completamente rodeado pelos moradores das
propriedades, trabalhadores e até gente desconhecida. Espantado, o coronel não
quis acreditar no que ouviu. Caminhou até a janela e lançou o olhar raivoso
adiante. E avistou uma multidão gesticulando, erguendo enxadas e facões,
fazendo menção de marchar até a entrada do casarão.
Velho
matreiro, achando que contornaria facilmente aquela inesperada revolta,
perguntou de quantos jagunços dispunha naquele momento. Ordenou que todos os
seus violentos escudeiros fossem chamados até ali, e imediatamente se pôs a
pensar no melhor a fazer naquele momento. E decidiu que iria sair para
conversar com a corja, mentindo o quanto pudesse até que a capangagem cercasse
todo mundo pelas costas e acabasse na bala aquela afronta. E deu ordens nesse
sentido.
Assim que
desceu a escadaria e acenou pedindo calma aos revoltosos, no mesmo instante
teve de se proteger atrás de uma pilastra para ouvir palavras que jamais
imaginou pudessem a ele ser dirigidas. Queriam respeito, o fim da escravidão, o
pagamento justo pelo trabalho, o fechamento daquele armazém desumano, o fim
daquelas dívidas inexistentes, reforma nas moradias e aumento do salário dos
outros trabalhadores.
Encurralado,
sem ter saída alguma naquele momento, só lhe restava que a capangagem logo
chegasse para acabar com aquela pouca vergonha. No momento, até o problema ser
resolvido na bala, achou conveniente gritar para a multidão e dizer que
aceitava fazer tudo aquilo que eles pediam. Ainda detrás da pilastra, esperou
ouvir qualquer resposta, que não veio. Mas ouviu de uma voz conhecida que os
homens já estavam ali. Sentiu um alívio danado. E saiu do esconderijo para
assistir a correria dos trabalhadores.
Enganou-se,
contudo. A capangagem estava ali sim, mas desarmada e no meio do povo. O
Coronel Titó não pôde acreditar no que via. Havia sido traído. Era o seu fim,
pensou enquanto se mijava nas calças. Procurou a arma na cintura, mas nem
conseguiu sacá-la. Alguém jogou um tomate maduro bem no meio do seu peito. Ao
sentir o baque e ver o vermelho por cima do linho branco, achou que havia sido
acertado. Alguém havia atirado. E ia morrer.
Desabou no
chão feito uma jaca mole. Não morreu desse desmaio, acordou na estrada e tendo
ao lado uma mala com os seus ternos. Arrumou forças para correr, prometendo a
si mesmo que ia arregimentar autoridades, governantes e políticos na defesa de
seus direitos. Era um absurdo um coronel dono do mundo ser despejado da própria
terra. Mas enquanto andava de gabinete, desacreditado e sem apoio, o povo ia
cuidando da terra. E assim continuou, semeando a subsistência com dignidade.
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e cronista
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