Por: Fábio Ataíde - Juiz de
Direito

A rotina de
uma Vara Criminal pode distanciar o juiz das especificidades dos casos. Os anos
passam e logo, um após outro processo, todos os “criminosos” se parecem iguais.
E assim não paramos para pensar que as aparentes semelhanças dos processos
escondem as diferenças dos casos. Ocorreu-me essa questão ao término de uma
audiência de um processo pelo crime de roubo. O acusado era um jovem. No
interrogatório, confessou o crime e disse que estava trabalhando no Projeto
Novos Rumos, construindo o Estádio Arena das Dunas. Falou de suas dificuldades
e que tinha lutado muito para finalmente conseguir esse primeiro emprego.
Ele já estava
condenado em outros dois processos pelo mesmo crime e nas mesmas
circunstâncias, estando cumprindo a pena restante de oito anos no regime
semiaberto. Ao que tudo indicava, seria condenado naquele terceiro caso e
inevitavelmente teria regressão para o regime fechado.
Terminada a
audiência, as partes pediram prazo para memoriais. Bateu-me de perguntar mais
ao jovem. Quantos anos você tem? Vinte e seis, disse-me, transformando a feição
completamente. Demonstrou um estado de extrema preocupação com a situação.
Pensei se ele teria tempo de reconstruir a nova vida que eu estava decidido a
interromper. Também achei que aquele jovem refletia sobre esse desafio.
Aquele caso
era mesmo diferente. O interrogado estava ali por causa da inflexibilidade de
sua mãe. Até onde sei e posso imaginar, foi ela quem denunciou o próprio filho
à polícia, fazendo-o devolver os objetos roubados. Uma mãe inflexível ou uma
exceção que confirma a regra? Certamente houve quem tenha reprimido essa mãe
por levar o filho às grades. Vizinhos costumam aparecer nessas horas.
À sombra de
uma mãe assim, aquele jovem estava prestes a ser condenado a perder o primeiro
emprego. As suas esperanças dependia agora da flexibilidade da justiça. O fato
é que em casa não havia perdão para os seus crimes. O jovem disse-me então que
já havia outra mãe na história. A sua mulher estava grávida do segundo filho e
o emprego no estádio de futebol fora a primeira oportunidade na vida, tendo
finalmente descoberto uma profissão. Baixando e levantando a cabeça em vários
momentos, falou-me que estava para ser promovido no trabalho e que tinha muita
esperança de continuar empregado depois do término das obras. Diante da
incerteza de seu futuro, disse-me que o seu regime de cumprimento de pena fora
flexibilizado. Ficava recolhido durante o dia para poder trabalhar à noite.
Aqui está a
questão. Diante de uma sociedade de controles informais que se tornaram
flexíveis, como construir uma justiça transformadora sobre o alicerce da
inflexibilidade? A mãe inflexível da história é uma exceção que confirma a
regra. Quero acreditar que ela não entregou o filho às grades, mas à
transformação.
E é aqui onde
reside o problema. É possível uma justiça transformadora e inflexível ao mesmo
tempo? Precisamos mesmo de uma justiça que seja uma mãe para o preso? Aos que
se prestam a responder essas indagações, tenho a dizer que não se lancem a dar
respostas rápidas sem antes pensar o que de fato isso significa. Sem dúvida,
parece inevitável o desejo por uma justiça transformada e que igualmente
transforme, a questão é que em muitos casos essa nova justiça precisa de um
novo programa transformador e isso nós não temos. Um projeto para o Judiciário
não é bom apenas por causa de seu ineditismo; atualmente as soluções para o
sistema de justiça se multiplicam, com também as promessas transformadoras.
Fixando a
minha análise ao âmbito do sistema de política criminal, parto deste limite
para pensar que muitos concordarão que as soluções transformadoras viáveis
remontam ao mais tradicional modelo de justiça setecentista, atualmente muito
bem representado pelo garantismo penal. Porém não fixo minhas bases de
raciocínio neste patamar.
Quero pensar
no modelo de flexibilidade da justiça, ou seja, nas janelas que se abrem para
quem entra no sistema penal; nos papéis das partes interessadas; no caráter
paterno da justiça penal e, finalmente, nos aspectos emocionais que isso
desperta nos sentimentos coletivos ou como isso tudo pode auxiliar na
construção de um novo programa de justiça penal materna. Assim, refletindo a
partir de tantos pontos, começo então a entender ou procurar a entender os
fatores que determinam a (in)flexibilidade do sistema punitivo e o que isso tem
a ver com transformação.
O primeiro
desafio à transformação da justiça penal surge por falta de um programa
criminal materno, ou melhor, por falta de um modelo de flexibilização do
sistema punitivo.
Analisemos o
sistema americano e o europeu. O primeiro notadamente inflexível, ao contrário
do segundo (DUFF, 2005). Quanto mais hierarquizada a sociedade, mais
tendência há de o sistema produzir soluções inflexíveis para os que estão na
escala inferior da estrutura social. Tendem a ser mais flexíveis os sistemas
punitivos onde existem mais soluções possíveis para a situação problema do
crime. A inflexibilidade do sistema punitivo, tão admirada por muitos, limita a
solução punitiva e, ao que parece, não resolve a questão de uma justiça que se
presta a transformar.
A tendência de
inflexibilização do sistema punitivo só produz aumento do controle formal, mas
não transforma nada. Imaginemos agora a questão no âmbito da justiça penal
juvenil. Na medida em que jovens ganharam mais direito ao longo do séc. XX,
mais direitos produziram mais liberdade e mais liberdades diminuíram as
possibilidades de controle. O mesmo ocorreu com os adultos. No entanto,
especialmente quanto à justiça juvenil, temos algumas outras particularidades
que realçam as contradições dessa justiça transformadora.
Nesse aspecto
estrito, as contradições se somam a um programa de justiça essencialmente
transformador em todos os aspectos, mas que aos longos dos anos foi sendo
corroído politicamente, até que chegamos ao momento de reconhecer a
possibilidade concreta de um retorno a um modelo de justiça inflexível, igual
para jovens e adultos. O velho juiz de menores, que assumiu a função
anteriormente cumprida pelo padre, agora dar lugar a uma justiça paterna que
não possui nenhum método científico e que não se funda em nenhum projeto
transformador. A redução da maioridade penal na verdade é uma redução do
programa transformador da justiça penal materna. E não apenas isso, o que mais
me preocupa é o caráter simbólico engendrado na proposta, como também a
consequente diminuição na flexibilidade nas soluções que envolvem o adolescente
em situação de risco.
A
flexibilidade da justiça penal, historicamente, comprometida por ausência de
políticas eficazes, começa a se expandir para novas políticas de controle. A
única inflexibilidade admitida no sistema de justiça penal deveria ser a das
garantias e, a partir destas, se queremos transformar a justiça penal,
precisamos recriar as nossas soluções para cada problema que temos e cada
problema exige uma solução diferente. Até onde sei, cada caso é um caso.
Em
praticamente todas as campanhas públicas para a mudança do sistema de justiça
penal encontramos à frente a figura da mãe. São elas as que mais sofrem com o
crime e com um sistema de justiça penal que seletivamente escolhe os mais
pobres para punir inflexivelmente. Os sentimentos de mãe, mas não de qualquer
mãe, o das mães injustiçadas ou das mães com seus filhos injustiçados, não nos
explica os motivo pelos quais uma mãe é levado a denunciar o crime do próprio
filho à polícia. O sentimento de justiça delas é superior ao dos pais (CHARMAN;
SAVAGE, 2009, p. 81). Acredito nisso, como acredito que a mãe de nossa história
quis apenas transformar o seu filho. Como juiz, irei fazer de tudo para cumprir
o seu desejo, ainda que isso implique transformar a justiça penal.
REFERÊNCIAS
CHARMAN,
Sarah; SAVAGE, Stephen P. Mothers for Justice? Gender and Campaigns
against Miscarriages of Justice. Brit. J. Criminol. (2009) 49, 900–915. Acesso
em 26/08/2009.
DUFF, R.A.
Punishment, Dignity and Degradation. Oxford J Legal Studies (Spring 2005)
25(1): 141-155 doi:10.1093/ojls/gqi007. Disponível.em:
http://ojls.oxfordjournals.org/content/25/1/141.citation,
acesso em 18/3/11.
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