Por: Rangel Alves
da Costa(*)
Conheci um
doido. E doido de pedra, de falar sozinho, de fazer careta pro vento, de dar
gargalhada ao ver alguém chorando, de encher a mão de barro e colocar na boca.
Doido, insano, maluco mesmo.
Mas nem sempre
assim. Questão de lua ou de sol, mas a verdade é que o danado de vez em quando
parecia normal que só a pessoa comum escondida no véu da loucura. Nestes
momentos, falava e ouvia, perguntava e respondia, dialogava com quem
conhecesse.
Só tinha um
problema. Mesmo não estando atirando pedra ou sentado o dia inteiro na pedra
quente, ainda assim mostrava claros sinais de sua alienação. Sentia-se
claramente isso quando ele conversava. Parecia dialogar normalmente, mas
concebia as coisas, tudo que lhe fosse perguntado, de uma maneira totalmente
maluca.
Sempre gostei
do doidinho. Nunca temi aproximação ainda que em época de lua cheia. Diziam que
ele estava num dia daqueles, querendo cuspir em todo mundo, avançar para rasgar
a roupa, mas nada disso me preocupava. Eu chegava e era bem recebido. Levava um
pacote de bolachão e ele comia quase tudo em segundos.
Depois de se
empanturrar e ficar com o rosto inteiro esbranquiçado da massa espalhada, se
enchia de um silêncio tão profundo que parecia cheio de sofrimento, de
angústia, de aflição. Mas eu já conhecia essa história e então bastava dizer
que no dia seguinte levaria mais e tudo voltava ao normal. Então eu aproveitava
para indagá-lo sobre algumas situações.
Verdade é que
já fui chamado de maluco por tanto conversar com doido. Nunca me importei
porque o diálogo mantido com o lunático possuía grande importância num livro
que eu estava escrevendo. Talvez os outros nem imaginem a riqueza trazida pelo
irreal, pelo fantástico, pelo inconcebível expressado pelo doidinho.
Ora, se
perguntado sobre o mundo, ele falava sobre o mundo, só que ao seu modo, na sua
forma de pensar as coisas, de criar situações para explicar determinada
realidade. Juntando fantasias, absurdos, maluquices mesmo, e também com
floreios românticos e até poéticos, a verdade é que ia repassando situações
inacreditáveis de se ouvir. Fatos, coisas e situações que realmente merecem ser
respeitadas pela concepção diferente de tudo.
Perguntei como
ele imaginava que as pessoas nasciam e ele respondeu: Toda vez que vem uma
ventania, um vento forte demais que chega derrubando tudo, é porque vai nascer
gente. Quando a mulher corre pra fechar a porta e a janela ele aproveita um
descuido e entra com força de boca adentro, descendo pela goela e indo parar na
barriga. E a mulher fica com aquele barrigão cheio de vento. Então ela fica com
vergonha do povo e se aperta toda pra ventania sair. E é quando nasce o menino.
Mas como já virou pedra lá na barriga, então é preciso que o marido tenha um
trabalho danado pra ir batendo naquela pedra até ela ficar com perna, braço e
cabeça. E depois bota um nome. Um nome de gente.
Perguntei como
ele acreditava que o mundo tinha surgido, e ele não demorou a responder: O
mundo nasceu da escuridão, da noite cega, do que havia de mais retinto. Não
havia nada porque tudo era breu, sem que se pudesse avistar qualquer coisa. Não
tinha nem gente nem bicho nem nada porque tudo tinha medo da escuridão. Mas
bicho e homem já existiam sim, só que dormindo eternamente pra não acordar
diante daquele breu. Mas um dia, não sei se foi homem ou bicho, despertou e
abriu um olho. O danado do olho brilhou na escuridão. E de repente os olhos dos
homens e bichos foram se abrindo de um jeito que mais parecia vaga-lume faiscando.
Como tudo já estava mais claro com a luz de tanto olho aberto, logo avistaram
uma porta. E uma pessoa correu e deixou tudo aberto. E lá fora tudo isso que a
gente vê hoje.
Certa feita
perguntei-lhe como via um doido, um louco, uma pessoa sem o juízo perfeito. E
dele, do próprio doido, ouvi: O doido que é doido mesmo, desses que não tem um
pingo de juízo na cabeça, quer fazer tudo direito, andar certinho, conversar
com os outros, quer sempre ser uma pessoa normal. Mas todo mundo sabe que não
é. Em todo momento e em todo lugar ele mostra que não tem um pingo de juízo,
que guarda dentro de si a maior loucura. Endoidece se tem raiva, fica maluco
por qualquer coisa besta. E depois ainda inventa que doido é quem faz diferente
dele. Agora veja se eu tenho cara ou jeito de doido?
O que tinha
era um mundo próprio, o seu mundo. E um modo totalmente diferente de
explicá-lo.
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e cronista
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