Por: Rangel Alves
da Costa(*)
Tia Zulmira,
lá do Tabuí, não tinha mesmo jeito. Entrava o mês já praticamente sem dinheiro
algum da aposentadoria contada que recebia, pois em poucos dias gastava tudo
com seus gatinhos. O nome de um era Tonico, outro era Tição, e mais Jorginho e
Quelé.
Quatro
moleques desavergonhados. Mas dissesse isso a Tia Zulmira pra ver se não saía
com uma quente e outra fervendo. Cuidava daqueles gatinhos melhor que a si
própria, vez que deixava de comprar muito do que necessitava para colocar
botinha no pé de um gato ou outro. Mas dissesse isso a ela...
Certa feita
tacou um cabo de vassoura na cabeça do carteiro só porque o coitado se meteu a
besta de perguntar por que ela colocava chocolate na boquinha de um preguiçoso
igual a Quelé. Não se meta na minha vida nem na do meu gatinho, seu descarado
de uma figa. Foi o que o homem dos envelopes esparramados ouviu.
Uma amiga dos
velhos tempos, uma tal de Dorinha do Anil, já nem achava mais jeito de
alertá-la sobre o perigo que era criar aqueles gatinhos como bichanos que precisavam
de dengo e, principalmente, de presentinhos e lembrancinhas. Sabia que não era
gatinho coisíssima nenhuma, mas tinha de dizer assim sob pena de se tornar
vítima da revolta da Titia Zuzu. Assim era chamada, quase num miado, pelos seus
peludos.
A amiga dizia
apenas que aqueles gatinhos já tinham donos, principalmente donas, e que já
estavam bem crescidinhos para serem sustentados com papinhas, chocolates,
bolinhos, camisas, bermudas e notinhas dobradas, que ela, às escondidas,
colocava abaixo do pelo. Tudo mundo já sabia disso e não se comentava noutra
coisa. Foi o que alertou a do Anil.
E
imediatamente foi colocada da porta de casa pra fora, enxotada, mas não sem
antes ouvir uma da boca raivosa de Tia Zulmira: Não admito que abra a boca pra
falar de meus gatinhos. Faz isso por inveja, por não ter um gatinho sedoso como
o Jorginho, um peludinho como o Tonico, um miadorzinho feito o Quelé, um
afogueado como o Tição. Por isso cuido deles como eu quiser.
Os parentes,
depois de uma luta inglória, de pedir, de implorar para que ela esquecesse
aqueles gatinhos e utilizasse seus rendimentos pra sobreviver com dignidade, já
haviam desistido de qualquer iniciativa nesse sentido. Não gostavam,
principalmente, que ela continuasse sendo falada de boca em boca como a velha
solteirona que dava leitinho na boca de quatro marmanjos, chamando-os ainda de
meus gatinhos.
Tia Zulmira
não se importava um tantinho assim com o que diziam ou pensavam. Ora, na sua
solidão de muito tempo, sentindo uma falta arrepiante de uma costelinha ao seu
lado, achava mais que justo que adotasse como seus aqueles gatinhos. Ademais,
eram tão mansinhos, obedientes, só miando mais alto quando ela se esquecia de
dobrar o dinheirinho e colocar debaixo do pelo.
Mas depois que
a notinha era ali cuidadosamente colocada, com muito zelo e acariciamento,
então tudo voltava ao normal. Contudo, a situação complicava quando Tia Zulmira
achava por bem dar banho nos seus bichanos. Enxugá-los zelosamente então. Toda
vez que preparava a bacia para dar banho de cuia, os gatinhos faziam a maior
reinação, a ponto de querer azunhar a pobre da solteirona.
Só se
acalmavam quando ela redobrava o valor da notinha. Sua sorte era que cada
gatinho tomava banho em dias diferentes, pois do contrário não havia notinha
que desse cobro de tanta esperteza dos bichanos. Mas um fato estranho acontecia
nesses momentos molhados. Não se sabe bem o motivo, mas toda vez que um gatinho
tirava as botas e ficava totalmente pelado para o banho, então Tia Zulmira
arregalava os olhos, avermelhava, fazia menção de que iria avançar sobre o
gatinho, mas depois desmaiava.
Gatinhos
malvados aqueles. Nunca a solteirona despertou tendo um a seu lado. Parece que
se assustavam com o desmaio da bondosa mulher e corriam de lá. Não sem antes
procurar mais uma notinha nos bolsos dela. Mas um dia aconteceu uma tragédia
indescritível, coisa de doer no coração.
Parece que
estava endoidando, mas aconteceu. Tia Zulmira resolveu doar o décimo terceiro
recebido a um só dos gatinhos. Escolheu Tição, o afogueado, porque achava que
miava melhor. Mas exigiu em troca que ele lhe desse uma azunhadinha.
No outro dia a
pobre mulher foi encontrada toda azunhada e sorridente, numa inexplicável
felicidade. Porém sem vida. Sem nenhuma daquelas sete que os seus gatinhos
possuíam.
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e cronista
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