Por: Rangel Alves
da Costa(*)
TERRA MOLHADA
Um milagre
sertanejo: água no tanque, terra molhada, o verde começando a tomar conta da
paisagem. E em Deus outro milagre virá: a semente vingando, o fruto nascendo, a
comida na mesa.
No sertão,
basta chuvarar e tudo começa a se transformar para o sertanejo. E quando caem
pingos grossos e volumosos então parece que as portas do paraíso se abrem.
Depois da enxurrada levando a tristeza, tudo que respingue das nuvens será de
incontida alegria.
Daí que chuva
no sertão possui muitos nomes e significados. É alento, é salvação, é
esperança, é renovação, é renascimento, é vida. É também o homem reencontrando
sua valorização interior, sua dignidade diminuída pela forçada submissão à
autoridade dona da água, da comida, do quilo disso ou daquilo.
Não obstante o
eterno abandono que lhe é imposto pelas autoridades e governantes, é durante o
período de estiagem que o sertanejo se torna ainda mais
desvalorizado. É quando mais precisa que se torna mais esquecido, mais
negligenciado, mais desrespeitado. Muitas vezes, igualmente ao bicho sem forças
nem pra berrar, tem que cair para ser lembrado.
Tais aspectos
já apontam para a importância que possui a chuva para o homem do campo, o
sertanejo que dela depende pra tudo na vida. Até que se resiste um bocado de
tempo sem qualquer trovoada, até que suporta viver muito tempo quando o tanque
endurece a lama.
Mas chega um
dia que o resto de força sucumbe de vez. Se a essa hora já não arribou com a
família no meio do mundo. Como diz o outro, prefere se prostrar num lugar
desconhecido a deixar os seus restos ao lado da ossada de seus animais.
Por isso mesmo
que os olhos fundos e sem brilho na feição tristonha tanto se erguem tentando
enxergar uma esperança no horizonte. Logo na madrugada quando já está de pé, a
primeira coisa que faz é abrir a porta da tapera para olhar a barra. Se esta
estiver acinzentada e entrecortada de nuvens sente um lampejo de alegria.
Mais tarde
começa a se alegrar ainda mais. O sol não desce de vez, tudo ficou meio
nublado, o mormaço toma conta de tudo. Mesmo sem o sol escaldante, a sensação
de calor se torna ainda mais forte. O vento traz um sopro quente, diferente,
mais encorpado; as plantas da mataria parecem tremular. É certeza de chuva. E
chuvarada. Chuva das boas.
Não demora
muito e as nuvens se aproximam ainda mais. Nuvens negras, gordas, cheias, todas
prenhes de esperança. Os pássaros se apressam em revoada, um som estranho
parecendo um trovão é ouvido ao longe. Alguém já enxergou um riscado de luz
pelo céu. O homem grita e a mulher corre para cobrir tudo que seja espelhado.
Olha pra cima, tanta telha quebrada. Mas fazer o que. E isso é o de menor
importância.
O cenário está
pronto para a chuvarada. Antes mesmo que o homem tivesse certeza de seus
sinais, o cágado já sabia de tudo, e por isso mesmo se apressou para sair de
sua loca e se põe caminhando sem rumo. Assim que o sertanejo avista o cágado
desnorteado não há mais do que duvidar. Tira o chapéu, faz a oração de
agradecimento, se benze e dá um sorriso. Está feliz. Vai chover.
E vai chover
mesmo. Já se sente o bafo subindo da terra, o cheiro quente e misterioso que
sai de suas entranhas. Mais um trovão, agora mais próximo e mais forte. Os
roncos avançam no passo das nuvens. E de repente o pingo grosso caindo sobre a
terra, do telhado, por cima de tudo. A natureza abre os braços para a
chuvarada, a terra se entrega aos seus desejos, as portas são fechadas para as
orações.
Chuva tão
forte que parece que vai derrubar tudo, levar tudo na força das águas. Duas,
três horas e mais. Um dia inteiro. Quando as nuvens se vão e o tempo começa a
estiar as portas são novamente abertas e o sertanejo começa a passar o olho ao
redor. Está contente, mas ficará muito mais se no dia seguinte ou em pouco
tempo chover novamente.
Sabe muito bem
que aquela chuvarada só teve serventia para encher os tanques e barreiros, mas
ainda não molhou a terra. Chuva forte assim, caída de vez, vai escorrendo por
cima da terra e nem tem tempo de afundar nas suas entranhas. Será preciso mais
chuva, e dessa vez mais fraca e continuada para que o chão absorva cada pingo
que cair.
Assim, a terra
fica molhada com chuva mais cadenciada, mais leve, e não com trovoada. Água
demais leva tudo na enxurrada e até as plantinhas ainda resistentes acabam
sendo destruídas e indo embora. Chuva boa no sertão é aquela depois de outra,
da forte. É a chuva após chuva que molha a terra e a deixa encharcada.
E quando vai
enxugando mais, ficando apenas molhada, é que o sertanejo passa a sonhar
grande. E não demora em ir atrás da enxada, da foice, da semente cuidadosamente
guardada na cabaça, na cumbuca. E assim o grão é semeado na terra molhada
também pela lágrima caída. De alegria, prazer, de contentamento.
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e cronista
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