Por: Rangel Alves
da Costa(*)
Se por aqui
ainda existissem madrugadas verdadeiras e galos nos quintais, eu diria que
amanheço antes do seu cantar. Não passa das três horas e já estou em pé. Pulo
da rede feito relógio compromissado. E assim a alvorada já me encontra nos
afazeres das letras costumeiras, pois nenhum dia sem uma linha, como bem diz o
provérbio latino: Nulla dies sine linea.
E nesses
últimos dias desperto mais feliz ainda. O tempo fechado e a noite chuvisquenta
são prenúncios do que encontrarei lá fora, as águas se derramando incessantes e
desapressadas. Coisa boa é despertar assim, levantar com a vida sendo lavada e
renascida para as possíveis realizações.
Assim, nos
últimos dias, é exatamente quando levanto da rede que a chuvarada já está
caindo ou prestes a tal. Se o tempo é chuvoso, não há instante mais apropriado
para a molhação, pois é entre a madrugada e o alvorecer que as nuvens descem
pertinho das cumeeiras e soltam seus salvadores e confortantes respingos.
Ao menos por
aqui, sem trovejar ou relampejar, as chuvas silenciosamente chegam para
desfazer a descrença e o descontentamento de muitos. Pelo calorão que estava já
se esperava sua visita, mas ainda assim de modo desesperançoso e aflitivo.
Descrença pelo sofrimento suportado pelos irmãos de mais adiante, nas distâncias
esturricadas do sertão sergipano.
Mas,
como diz a sabedoria, assim sempre será no cumprimento dos desígnios. As
estiagens mais prolongadas não significam que o homem esteja abandonado,
entregue às desvalias e ao desprezo divino. Pelo contrário, e está escrito
no Eclesiastes, que há um tempo pra tudo. Tempo de semear, tempo de colher. E
também de padecer.
E de repente o
tempo vai mudando, o vento soprando diferente, os olhos brilhando de
contentamento ao avistar o horizonte cheio de nuvens prenhes, carregadas da
seiva molhada da vida. E começam a cair os pingos grossos, volumosos, valentes,
fazendo a terra soprar um bafo quente e cheirando a trovoada. O sertanejo
conhece muito bem esse cheiro. E diz que não há fragrância melhor de sentir.
Por aqui, na
dita cidade grande, não há aquele cheiro diferente subindo da terra, mas sim o
barulhar nos telhados e os sons das cortinas de água se esparramando nos
asfaltos e pedras, descendo pelas biqueiras e escorrendo pelas paredes. As ruas
são lavadas, as plantas e canteiros encharcados, e as águas que se avolumam vão
se tornando enxurradas e abrindo caminhos à força. E o que for frágil que saía
da frente.
Mas nem sempre
as chuvas chegam com espantosa voracidade. As águas que vêm caindo após a
madrugada até o amanhecer só causam empecilhos nos lugares onde os escoamentos
são dificultados pela ação do próprio homem. De resto, o que se tem é a
sensação de cidade limpa, lavada pelas forças da natureza e com um clima muito
mais agradável.
Por tudo isso,
deito contente quando a noite já está chuvosa e acordo feliz quando os pingos
grossos começam a cair. Sigo para olhar o tempo lá fora e do portão avisto a
escuridão iluminada pelas luzes dos postes e o asfalto brilhoso, de negrume
acentuado, todo lavado e produzindo uma belíssima imagem com o bater dos pingos
graúdos.
De vez em
quando sento ao lado do portão e me deixo molhar um tantinho só para apreciar
melhor esse momento mágico. Instante atraente e diferenciado porque não somos
muito acostumados com as chuvas diárias ou contínuas. E talvez seja por isso
mesmo que os sons e imagens que provocam nos afloram tão sublimes sentimentos.
Não sei bem se
é porque o momento ainda é de indefinição entre madrugada e manhã, se é porque
o horizonte ainda se mostra escurecido e as luzes das ruas permanecem acesas,
ou se porque estes primeiros sinais do dia nos encontram com a mente aberta e
apta para voos no pensamento. Mas a verdade é que somos tomados por saudades e
lembranças dificilmente retomadas nos dias estiados e calorentos.
E passo a me
ver entre os meninos nus correndo pelas ruas interioranas em dias de chuvas
fortes, cortando veredas de chão batido em busca dos esguichos fartos jogados
pelas biqueiras, defronte às casas. Inesquecíveis momentos de brincadeiras
molhadas que não existem mais. Festa sem igual da meninice pelas ruas de Poço
Redondo.
E é por
aquelas bandas sertanejas que o meu pensamento também viaja, mas por outros
motivos, nessas madrugadas/manhãs de chuvarada caindo. Então vejo meu irmão
sertanejo todo feliz e contente, tirando o chapéu de couro para agradecer aos
céus, enchendo a mão de terra molhada e dizendo que ali será plantada a semente
da vida.
No sertão,
mais que em qualquer outro lugar, a chuva representa a própria vida. E suas
águas escorrem na alma do sertanejo como veias que lhe permitem sobreviver.
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e cronista
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