Por: Rangel Alves da Costa(*)
OS
CAFUNÉS DE MINHA AVÓ
Sertaneja de
nascença e de vivência, minha avó materna era o espelho fiel da meiguice, da
amizade, do cuidado com os seus, da imensa religiosidade. Não lembro bem a
estatura dela, se era mediana ou baixa, mas apenas porque prefiro recordá-la
pequenina, diminuída pelo tempo, recurvada pelos anos.
Dona Marieta
era assim, pequenina e imensa em tudo. Depois dos afazeres da casa, após
colocar seu vestido muito abaixo dos joelhos, se lançava ao pote de óleo de
coco e ao frasco de alfazema. E do quarto saía de cabelo brilhoso e bem
penteado, toda cheirosa e faceira. Não via a hora de chegar o entardecer.
Era quando o
sol descia e alguma aragem sertaneja começava a soprar, que ela colocava sua
cadeira na calçada e ali se punha a responder os cumprimentos e as bençãos de
todo mundo que passava. Menino, jovem ou adulto, não havia um sequer que não
passasse por ali para receber seu sorriso e sua palavra.
Mãeta, como
era chamada por todos, parecia uma rainha sentada num belo trono. Mas era
apenas uma velha cadeira na calçada de sua casa de arquitetura antiga e repleta
de histórias. Lá dentro, nas dependências e arredores, muito caminhou a
história sertaneja e sergipana de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo.
Seu esposo e
meu avô materno, Teotônio Alves China, o famoso China do Poço - dono de bodega
e de respeito e admiração -, havia sido amigo tanto da pistola como da cruz.
Isto porque recebia naquela casa para repasto e repouso tanto o maior dos
cangaceiros, o temido Lampião, como o Padre Arthur Passos.
E foi Dona
Marieta, nervosa que só, cheia de tremeliques pelas pernas, que se virou como
pôde para servir mesa farta (buchada, galinha de capoeira, carne de bode e tudo
o mais) na ocasião em que os dois contraditórios visitantes, Lampião e Padre
Arthur, pelas forças inesperadas do destino, acabaram chegando no mesmo dia à
residência do amigo China.
Mas muitos
daqueles que a avistavam sentadinha na sua velha cadeira nem imaginavam a
mulher de um passado tão rico em acontecimentos. Como a avistavam, toda calma e
serena, enxergavam apenas a devota de todos os santos, a fervorosa religiosa,
aquela que, sem ser beata, todos os dias comparecia à igreja cheia de fé,
rosários e terços.
Mesmo já com
dificuldades para caminhar, pois sem forças para segurar os passos em certos
momentos, ainda assim não deixava de, todos os dias, teimar em se esforçar
demais. Saía para fazer compras na pequena mercearia de Lourenço mais adiante
(deixando a conta escrita no caderninho até o fim do mês) e também tomava o
rumo da igreja matriz, ali mesmo no outro lado da praça onde morava.
Por muito
tempo, praticamente fiz moradia na casa dela. Viúva, teimosa que só, decidida a
continuar morando sozinha, tinha os netos como maior tesouro. E tinha como
netos muitos outros filhos de amigos e vizinhos. Seus olhos brilhavam de
contentamento toda vez que um chegava para a reinação de canto a outro. Mas
como eu já vivia por lá, então recebia um tratamento diferenciado.
Lembro como
hoje. Não choro porque não tenho mais lágrimas, mas tudo tão presença e saudade
no meu pensamento. Sentada na calçada ao entardecer, gritava pelo meu nome e eu
já sabia o que era. Ela não precisava dizer nada e eu já ia colocando a cabeça
no seu colo para que me fizesse cafunés.
Os seus dedos
magros corriam por minha cabeça, entravam nos cabelos, e começavam a percorrer
seus caminhos suados, tantas vezes sujos das brincadeiras de bola e das
correrias. Dizia sempre que ia catar piolhos e lêndeas, mas não, pois sempre
fui inimigo dessas indesejáveis criaturas. Então começava a utilizar as pontas
dos dedos e as unhas para dar toques macios e cativantes, como se estivesse
suavemente esmagando algo indesejado ali encontrado.
Os cafunés
sumiram. Ninguém fala ou faz mais cafuné. Minha avó também. Um dia partiu sem
deixar o seu colo e suas mãos para minha cabeça de eterna criança.
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e cronista
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