Por: Rangel Alves da Costa(*)
A
BONECA DE PANO
Ela
simplesmente foi esquecida. Quando os pais, na pressa danada de subir no
caminhão pau de arara e seguir adiante sem rumo, gritaram que a menina se
apressasse sob pena de ficar ali sozinha, a pequenina correu e acabou
esquecendo sua boneca de pano.
O apressamento
dos pais tinha razão de ser. Não suportavam mais continuar ali se despedindo
daquilo que havia sido toda uma vida. Somente a seca terrível, inclemente,
apavorante, para expulsar de seu lar e de seu chão esturricado aqueles que ali
cresceram e enraizaram.
Três anos
seguidos sem cair chuva de molhar chão, sem se ouvir o ronco do trovão ou
avistar o facho do relampejar, sem uma trovoada sequer, havia se tornado
impossível continuar sobrevivendo ali. Com tudo seco, sem comida e sem água nem
pra gente nem pra bicho, a desvalia tinha batido à porta. E entrado.
Os pais, de
olhos fundos e magreza esculpida nos corpos esquálidos, pareciam dois velhos
roubando a jovialidade que ainda possuíam. O sofrimento demais, a tristeza
também. Ninguém suportava mais não ter o que oferecer à filha como alimento.
Ela não chorava, mas nem precisava. O entristecimento a fazia também definhar
cada vez mais.
Menina bonita,
de pele trigueira, cabelos alongados, olhos castanhos, uma flor. Mas isso
noutros tempos, com coisa de dois anos atrás. Continuava bonita, porém sem o
olhar fascinante da infância, sem o sorriso espontâneo, sem alegria para quase
nada. A fome e a sede entristeciam por dentro e por fora.
A única coisa
que ainda fazia a menina sorrir, conversar, mostrar um pouco de alegria e
contentamento, era a sua boneca de pano. Como as portas da escola onde estudava
estavam fechadas desde que a professorinha enlouqueceu diante da calamitosa
situação, passava praticamente o dia inteiro com sua bonequinha.
A boneca de
pano tinha história igual aos humanos. Passando de geração a geração, sendo
remendada e ajeitada em cada mão que passava, um dia havia sido de sua avó, que
presenteou sua mãe e lhe foi repassada como guardiã daquela vida de pano.
Apesar do tempo, dos tantos anos que já possuía, continuava bela e autêntica:
toda de pano mesmo, com linha como cabelo e bordados para marcar os contornos
dos olhos, nariz, boca.
De vez em
quando a menina era avistada debaixo do umbuzeiro conversando com sua boneca,
que tanto era chamada de filha como amiguinha. Deitava e dormia com ela, quando
tinha alguma coisa para comer sempre fingia colocar um bocadinho na sua boca.
Não precisava nem casinha, pois com ela vivia pra cima e pra baixo.
Mas um dia o
pai avistou, lá embaixo do umbuzeiro, a boneca esquecida num canto e sua filha
chorando mais adiante. Correu para ver o que se passava, se sua filha estava
com algum problema, e ao se aproximar e perguntar o que ela tinha para estar
chorando, simplesmente ouviu: Tô com fome!
Foi a gota
d’água. Ou melhor, o momento da corda arrebentar de vez. No mesmo instante
decidiu que teria de fechar a porta de casa e seguir com a família pra outro
lugar, pra onde o caminhão pau de arara fizesse a última parada e a situação
não fosse tão medonha como aquela, na terra seca e sem jeito de sobreviver.
Vendeu o
pedacinho de terra que tinha e deixou somente o chão da tapera quase na beira
da estrada. Seu sonho era voltar qualquer dia e refazer a vida no mesmo lugar,
pois sabia que ia sofrer muito distante dali. Mas não tinha mesmo como ficar. E
na outra semana uns dois ou três sacos com tudo o que tinham já estavam
colocados na beira da estrada, à espera do caminhão.
Foi quando o
carro despontou na curva que os pais apressaram-se a gritar pela menina. Na
correria, ela acabou esquecendo sua boneca no umbral da janela. E somente
muitas léguas depois se lembrou de sua amiguinha e começou a chorar. Mas já
estavam longe demais. E a bonequinha acabou ficando.
Dois dias no
umbral da janela sem que ninguém passasse para avistá-la. No terceiro dia, a
ventania empurrou a janela e ela foi arremessada para dentro. Caiu bem no
quarto de sua amiguinha, por cima da cama de vara e sem colchão. E ali foi
ficando. A janela balançando ao sabor do vento e ela ali estirada.
Um dia
despertou com o barulho do trovão. Pulou da cama e correu até a janela. Lançou
os olhos de boneca adiante e sentiu que trovoada das grandes não demoraria a
chegar. Fechou a janela e correu pra debaixo da cama. Tinha medo de trovões. E
logo começou a ouvir a chuva forte batendo no telhado.
Quando as
paredes desabaram ela ficou debaixo do varal da cama, sem poder sair. E
desacordada ficou pelo tempo quem nem imagina. Nem ouviu quando os donos da
casa retornaram para, do barro, reerguer a vida. E nem quando a mão de sua
amiguinha lhe retirou debaixo da cama encimada de pedaços de telha.
Nem sabia se
continuava viva ou se era apenas uma boneca de pano.
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e cronista
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