Por: Rangel Alves da Costa(*)
O
BÊBADO E O POSTE
Beber demais
tem lá suas consequências. Alguns se tornam sábios de um instante pra outro,
outros se revelam com o incansável dom da oratória, e ainda outros se enchem de
valentia, de ressentimentos e mágoas passadas, sem esquecer aqueles que começam
a chorar feito bezerro desmamado. Se isto pudesse acontecer.
Contudo,
existem aqueles autênticos. Ora, bebem muito e ficam bêbados. Só isso. O
problema é daí em diante, principalmente quando o bar não é o lar nem a calçada
a cama. Então vem o dificílimo retorno, ou a tentativa disso, pois os caminhos
se tornam tão entrecruzados que só mesmo verdadeiro milagre para que alcance a
porta de casa.
Outro dia eu
soube de um desses bêbados intelectuais, daqueles que andam com jornais debaixo
do braço e se metem a discutir absolutamente sobre tudo que o vizinho de copo
puxar assunto. Desse tipo geralmente não adormece ao pé do balcão nem se mostra
totalmente embriagado no local. Mas, por outro lado, sai costurando todo
caminho que encontrar.
E lá vai ele
pisando em falso pela calçada e sem avistar o poste adiante. Quando deu por si
já estava em cima do cimento duro, porém sem saber o que era. Bateu e voltou. E
em seguida retrucou:
“De novo essa
perseguição, esses marmanjos armados tomando o meu caminho. Colocam tanques
novamente nas ruas para impedir que o povo brade seu descontentamento contra
esses generais de merda...”.
Falava da
ditadura. E prosseguiu:
“Já fui preso,
já fui torturado, quase me cegam um olho, sofri feito um desgraçado. E agora,
quando pensava que estava livre daquilo tudo, eis que tomam novamente o poder e
colocam mais uma vez os tanques nas ruas para impedir a passagem dos
descontentes...”.
E marchou
novamente contra o poste. Outro esbarrão e quase uma queda pra trás. Ainda mais
atordoado, não se fez de rogado:
“Parece que
quer briga mesmo, não é? Mas se não for o tanque dos generais quem será que
está impedindo minha passagem? Seja lá o que for, acho melhor sair do meu
caminho. Sou homem de paz, mas não fujo da guerra. Não vou medir as
consequências se preciso entrar em confronto. Conheço muito bem os meus
direitos e lutarei para defendê-los até o fim. Pela última vez vou dizer, e até
pedir educadamente: por favor, me deixe passar em paz...”.
Avançou com
passo acelerado e bateu a testa. Recuou vendo estrelas. Agora tomado de ira,
mais cego ainda e respingando enraivecimento, bradou:
“O que é isso,
é a guerra, é o ataque aos homens de bem? Quero apenas seguir meu caminho e
você vem com a arma empunhada pra cima de mim, me atacando covardemente. Guarde
suas baionetas para os seus iguais, seus milicos de uma figa. Ainda não fiz
absolutamente nada para que venha assim tão violentamente, batendo com sua arma
covarde na minha testa. Só faltava essa. Pensando viver na paz e de repente sou
atacado covardemente. Se for valente mesmo me deixe passar pra pegar minha arma
e verá do que sou capaz. E agora vou passar de qualquer jeito, nem que seja por
cima do seu cadáver...”.
Deu uns três
passos pra trás e avançou violentamente. Com a força que vinha, bastou bater na
dureza do poste e cair pra trás. Para um bêbado, até que levantou rapidamente,
e dessa vez com ferocidade indescritível:
“Pode me
algemar, me bater, me levar para os imundos porões da ditadura, mas agora vou
gritar para que todos ouçam. Rasguem a Constituição, destruam a lei maior.
Nesse país não há mais liberdade de ir e vir, de andar com segurança por nenhum
lugar. Veja aqui, veja aqui. Aqui está a aberração maior. Quero seguir adiante
e não querem me deixar passar. Veja aqui, uma terrível arma para impedir que o
cidadão vá a qualquer lugar. São tanques, baionetas, armas terríveis. E podem
considerar-me um mártir da liberdade. De agora em diante serei um mártir porque
vou morrer passando por cima dos canhões. Mas vou passar...”.
Noite fechada,
chuva fina caindo, apenas algumas janelas entreabertas sem entender o que se
passava com aquele bêbado em verdadeira luta para seguir adiante sem bater no
poste. Eis que um cachorro vadio se aproxima do homem já pronto para outra
empreitada e dá um latido forte.
“Até o general
veio me atacar!”.
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
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