Por: Rangel Alves da Costa(*)
SINHÁ
FILÓ E OS TRÊS GATINHOS
Não sei por
que um proseado sobre Sinhá Filó e os três gatinhos se a coitada da velha
criava também um ratinho. União difícil, mas aos olhos dela tudo apenas
bichinhos. Na verdade, o que mais gostava na vida era vê-los correndo por
dentro da casa, arreliando em rebuliço.
Desde muito
que a boa mulher, além de três gatos de estimação, criados como filhos fossem,
recebia a visita de mais de dez, todo dia e a qualquer hora. Quem passava pela
frente do casarão ouvia miado; quem entrava sem pedir licença corria o risco de
ser azunhado.
Mimoso, Sedoso
e Traquina, eis o nome dos bichos. Mas também nomeava os que chegavam ali em
busca de comida, de descanso, de brincadeira e arreliamento. Peludo,
Caramelado, Rabugento, Gafanhoto, apenas para lembrar alguns nomes.

E todos, os
seus e os visitantes, indistintamente – menos o ratinho - eram Xanim. Xanim pra
cá, Xanim pra lá, e ouviam o que ela dizia para, com distinta obediência, parar
a correria, deixar de miar, solta o fio do novelo de lá, deixar o rato em paz.
Ah, sim, havia
um rato também. Um só. Sinhá Filó criava gatos e também um rato. Defendendo
este diante da gataiada, tudo fazendo para que um só não se tornasse vítima de
tantos, redundou num final triste e comovente. Não gosto nem de lembrar.
Mimoso, Sedoso
e Traquina, os três gatinhos de Sinhá Filó, tudo faziam para conviver bem com o
rato. Na verdade, tudo dolorosamente suportado, fingido, falseado, pois o que
muitas vezes queriam era mesmo abocanhar o pequenino roedor. E não faltavam
amigos instigando a isso.
Por isso mesmo
os três eram constantemente zombados pelos outros gatos visitantes. Chamados de
frouxos, gatinhas, xaninhas, ouviam calados para não despertar a ira de sua
dona. Sabiam que não tinham onde morar se fossem expulsos dali. Exemplo maior
acontecia com os visitantes, que constantemente estavam ali porque não tinham
onde comer e descansar.
Tentaram
explicar essa situação aos outros gatos, mas foi pior. Não sabiam, porém, que
eles já estavam planejando armar uma emboscada para lançar as unhas afiadas no
pelo do ratinho. Até que Peludo, por dever de amizade, chamou-os num canto e
contou tudo.
Um minuto
depois e Sinhá Filó já estava sabendo. Como a notícia chegou até ela? Ora, os
três apareceram acompanhando o rato e em seguida, fazendo gestos de azunhamento
e mordida, acenaram em direção ao local onde estavam os outros gatos.
Mesmo
encurvada e cheia de reumatismos, a velha se apressou em direção ao cabo de
vassoura e saiu veloz igual a menina nova. Raivosa, furiosa, cheia de ira e
embrutecimento, desceu a madeira no lombo dos gatos e disse que nunca mais
queria ver nenhum daqueles entrando na sua porta.
A raiva e o
esforço foram tantos que a mulher acabou adoentada. Assim que voltou à
sua cadeira de balanço começou a sentir o corpo todo doer, a
respiração chegar mais lentamente, o corpo idoso tremular de calor e frieza.
A partir desse
dia, sem força suficiente para os afazeres cotidianos, descuidava de tudo,
deixava seus gatinhos sem comida e sem água e muitas vezes nem lembrava que
existiam. Chegava gente para alimentá-la, cuidar do asseio, dar remédio, não
deixar nada faltar. Mas os bichanos ficaram completamente esquecidos.
A fome era
tanta que Mimoso disse a Sedoso que não suportava mais nem ficar em pé.
Sofrendo também, Traquina propôs que matassem o rato e dividissem o alimento.
Mas Sedoso rejeitou na hora a saída encontrada.
Disse que em
homenagem à sua dona, agora tão doente e parecendo esquecida de tudo, não seria
justo quebrar sua confiança matando aquele que também era como seu filho, ainda
que um simples rato.
E opinou sobre
o melhor a fazer: Ir embora dali. Cada um se segurar na força que tivesse,
lamber pela última vez o pé de sua dona, seguir até a porta e daí em diante
entregar-se aos braços da desumanidade, cruzando os mais impiedosos caminhos.

Mimoso foi o
último a sair. Da porta, olhou pra trás e avistou o rato choroso, de lenço à
mão, em tempo de se acabar de tristeza. Cuide bem dela, disse o gato à soleira.
E os três seguiram seus destinos de gatos envelhecidos, magros,
desesperançados.
E pela porta
dos fundos, no mesmo instante, os outros gatos começaram a entrar. Quando o
rato se virou encontrou línguas salivantes e dentes esfomeados. Perdido,
assustado, sem saber o que fazer, pulou no colo da velha.
Ainda com
medo, os gatos não avançaram. Mas ficaram ali esperando a descida do rato. Mas
ele não desceu. Dois dias depois morreu juntamente com Sinhá Filó. No mesmo
instante, no balançado triste da cadeira de balanço.
(*)Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três
Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos";
poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já
Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida
do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho"
e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já
estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº
328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
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