Por: Rangel Alves da Costa
SINHÁ
FILÓ E A JANELA DA TARDE
Sinhá Filó era
mulher de hábitos e grandes paixões. Habituada a sempre ter sobre a mesa bolo
de macaxeira ou puba, uma moringa d’água no umbral da janela dos fundos e uma
vela acesa ao lado do belo e rústico oratório. E outro estranhíssimo hábito,
que era o de mijar em pé, muitas vezes deixando o mijo escorrer pelas pernas.
Apaixonada
pela criação de bichos de estimação – criava e pacientemente cuidava de três
gatos e um ratinho -, pelas noites chuvosas com pingos batendo forte no
telhado, pelas radionovelas e também pela janela da tarde. Mas esta janela
envolvia muito mais coisas.

Chamava janela
da tarde, mas era do entardecer, pois somente quando o sol ia perdendo sua
força e as cores afogueadas iam tomando conta do horizonte é que ela se sentava
na velha cadeira de balanço, junto à janela. Duas vidas: a solidão varanda
adentro e o passado janela adiante. E dentro de tudo.
Talvez este
fosse o momento mágico de sua vida, aquele instante que coração e espírito
ficam ansiosos pela chegada. Depois de experimentar um pedaço de bolo com café
antigo (chamava assim o café ali mesmo torrado e pisado no pilão de herança
escrava, depois colocado no bule sobre fogão de lenha e que em minutos exalava
o negro e saboroso paraíso), seguia até a cadeira de balançamento.
Dentro de
casa, rente à janela, se punha a mirar o mundo lá fora. Levantava o olhar ainda
apurado, divisava as nuvens entrecortadas pelos matizes do entardecer. Vermelho
distância, amarelado saudade, uma cor de fogo que só intimamente sabia o
significado. Um braseiro no horizonte, fornalha enchendo o tacho ardente da
memória. Moldura triste a do entardecer, retrato tão antigo que vai
dolorosamente surgindo.
Diante dessa
tela, com brisa leve e perfumada das montanhas mais adiante, ou mesmo sentindo
a dança da ventania, a velha Filó parecia viajar. E viagem longa, distante,
para um passado que logo se fazia presente no olhar e na imaginação. E quanto
mais as folhas secas passavam voando, as revoadas riscavam as distâncias, mas
ela montava na garupa das lembranças e recordações, dos tempos idos. E seguia
no galope do tempo.
Ali naquele
lugar havia uma cancela, depois um umbuzeiro e uma estrada com curva mais
adiante. Ali onde é cimento era mato e mataria, pedra grande e jaqueira. Ali
onde passa gente passava boiada, bicho correndo, vaqueiro aboiador, menino
sertanejo traquinando de pés descalços, e também lobisomem. Diziam que o padre
namorador e pai de uma ninhada de filho havia se transformado em lobisomem
assim que bateu as botas. E corria por ali em noites de breu.
Mas agora tudo
estava muito diferente. O tempo veio transformando tudo, os anos foram deixando
os cansados para trás, e quem foi surgindo já encontrou outro lugar, outra
feição, outra vida. Ainda assim é o outro tempo, o passado que Sinhá Filó
enxerga todas as vezes que senta na janela da tarde. Tempo baú, tempo diário
antigo, tempo de retrato amarelado na parede, tempo de ontem. E como dói...
De vez em
quando um passarinho pousava no umbral da janela, ainda que naquele momento
todos os passarinhos já estivessem nos leitos das galhagens ou nos ninhos. E
sempre chegava do mesmo jeito. Passageiro do vento, piava assim que avistava a
mulher, como a dizer que já estava ali, que já havia chegado para lhe fazer
companhia.

Que passarinho
mais parecendo gente, meu Deus. Depois pulava no ombro e aproximava o bico da
pele enrugada. Era um beijo. Era um bico, mas ela sentia um lábio, uma boca, um
beijo. Bem assim beijava o falecido, logo recordava. E uma lágrima descia pelo
canto do olho. E depois o voo, depois outra lágrima e um olhar acenando.
Ai como eu
queria voar qualquer dia, como eu queria pegar na asa do meu amor e partir,
passarinhar pelo céu do eterno e verdadeiro amor. Dizia a si mesma, com a
palavra mais triste na alma existente. E pela janela aberta já iam entrando as
sombras da noite. Uma lua, uma luz. Um vaga-lume parecendo com ele. O eterno
amor.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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