quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

SINHÁ FILÓ E A JANELA DA TARDE (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa
Rangel Alves da Costa

SINHÁ FILÓ E A JANELA DA TARDE

Sinhá Filó era mulher de hábitos e grandes paixões. Habituada a sempre ter sobre a mesa bolo de macaxeira ou puba, uma moringa d’água no umbral da janela dos fundos e uma vela acesa ao lado do belo e rústico oratório. E outro estranhíssimo hábito, que era o de mijar em pé, muitas vezes deixando o mijo escorrer pelas pernas.

Apaixonada pela criação de bichos de estimação – criava e pacientemente cuidava de três gatos e um ratinho -, pelas noites chuvosas com pingos batendo forte no telhado, pelas radionovelas e também pela janela da tarde. Mas esta janela envolvia muito mais coisas.


Chamava janela da tarde, mas era do entardecer, pois somente quando o sol ia perdendo sua força e as cores afogueadas iam tomando conta do horizonte é que ela se sentava na velha cadeira de balanço, junto à janela. Duas vidas: a solidão varanda adentro e o passado janela adiante. E dentro de tudo.

Talvez este fosse o momento mágico de sua vida, aquele instante que coração e espírito ficam ansiosos pela chegada. Depois de experimentar um pedaço de bolo com café antigo (chamava assim o café ali mesmo torrado e pisado no pilão de herança escrava, depois colocado no bule sobre fogão de lenha e que em minutos exalava o negro e saboroso paraíso), seguia até a cadeira de balançamento.

Dentro de casa, rente à janela, se punha a mirar o mundo lá fora. Levantava o olhar ainda apurado, divisava as nuvens entrecortadas pelos matizes do entardecer. Vermelho distância, amarelado saudade, uma cor de fogo que só intimamente sabia o significado. Um braseiro no horizonte, fornalha enchendo o tacho ardente da memória. Moldura triste a do entardecer, retrato tão antigo que vai dolorosamente surgindo.

Diante dessa tela, com brisa leve e perfumada das montanhas mais adiante, ou mesmo sentindo a dança da ventania, a velha Filó parecia viajar. E viagem longa, distante, para um passado que logo se fazia presente no olhar e na imaginação. E quanto mais as folhas secas passavam voando, as revoadas riscavam as distâncias, mas ela montava na garupa das lembranças e recordações, dos tempos idos. E seguia no galope do tempo.

Ali naquele lugar havia uma cancela, depois um umbuzeiro e uma estrada com curva mais adiante. Ali onde é cimento era mato e mataria, pedra grande e jaqueira. Ali onde passa gente passava boiada, bicho correndo, vaqueiro aboiador, menino sertanejo traquinando de pés descalços, e também lobisomem. Diziam que o padre namorador e pai de uma ninhada de filho havia se transformado em lobisomem assim que bateu as botas. E corria por ali em noites de breu.

Mas agora tudo estava muito diferente. O tempo veio transformando tudo, os anos foram deixando os cansados para trás, e quem foi surgindo já encontrou outro lugar, outra feição, outra vida. Ainda assim é o outro tempo, o passado que Sinhá Filó enxerga todas as vezes que senta na janela da tarde. Tempo baú, tempo diário antigo, tempo de retrato amarelado na parede, tempo de ontem. E como dói...

De vez em quando um passarinho pousava no umbral da janela, ainda que naquele momento todos os passarinhos já estivessem nos leitos das galhagens ou nos ninhos. E sempre chegava do mesmo jeito. Passageiro do vento, piava assim que avistava a mulher, como a dizer que já estava ali, que já havia chegado para lhe fazer companhia.


Que passarinho mais parecendo gente, meu Deus. Depois pulava no ombro e aproximava o bico da pele enrugada. Era um beijo. Era um bico, mas ela sentia um lábio, uma boca, um beijo. Bem assim beijava o falecido, logo recordava. E uma lágrima descia pelo canto do olho. E depois o voo, depois outra lágrima e um olhar acenando.

Ai como eu queria voar qualquer dia, como eu queria pegar na asa do meu amor e partir, passarinhar pelo céu do eterno e verdadeiro amor. Dizia a si mesma, com a palavra mais triste na alma existente. E pela janela aberta já iam entrando as sombras da noite. Uma lua, uma luz. Um vaga-lume parecendo com ele. O eterno amor.
  
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.

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