Por: Rangel Alves da Costa(*)
CHUVARADA
No alto sertão
sergipano, lugar de um povo de tantas preces e fervorosas orações, os rogos
foram ouvidos e a chuva chegou com feição de trovoada. O sol se escondeu um
tiquinho, as nuvens prenhes avançaram, o horizonte sombreou e o pé-d’água caiu.
Chuva forte
mesmo, chuvarada das grandes, dessas de pingo grosso e que se derrama como
enxurrada por cima da terra. Tudo seco demais, tudo fraco demais, tanta
água por cima causa estrago maior que o imaginado. É pancada no couro do bicho
magro, açoite na árvore seca, ameaça à casinha de taipa.
Quando
primeiro vai caindo chuva mais fraca, apenas molhando o chão, adentrando no
seio da terra e fazendo com que as plantas e os animais se sintam novamente
regados por aquilo que tanta falta lhes fez, se diz então que pode cair a
trovoada maior do mundo. As águas famintas, tantas, abruptas, já não provocam
danos inesperados.
Mas sem chuva
preliminar, sem que a terra já tenha sido molhada, a chuvarada repentina pode
provocar graves consequências. Ora, a terra está seca, dura, esturricada, e
toda água que bate em cima não tem nem tempo de ser absorvida, pois
simplesmente se acumula e vai seguindo adiante, formando enxurradas e derrubando
tudo que encontrar pela frente.
E foi assim
que aconteceu no sertão. Depois de quase três anos de seca inclemente, a essa
altura com a fome e a sede se espalhando em cada canto, com os descampados
recobertos de ossadas de animais e o valente sertanejo sem ter mais o que
fazer, enfim, de uma hora pra outra, caiu a chuvarada de assustar.
No estágio devastador que
estava, com cada raio de sol caindo em fornalha, as pessoas olhavam para o alto
e ficavam cada vez mais desesperançadas. Tão cedo gota d’água não cairia ali,
diziam um e outro. Ora, nenhum sinal de formação de nuvem de chuva, nenhum
passarinho voejando diferente, nada que estivesse preparando a paisagem para a
molhação.
Contudo, um
cágado apareceu na mataria e um velho sertanejo logo brilhou o olho. Quando um
compadre disse que tinha avistado outro cágado saindo de uma loca, então não
havia mais do que duvidar. Cairia chuva na certa, e trovoada. Somente o cágado
sertanejo anuncia com precisão a chuvarada que vem.
É sabedoria
antiga tida como certa. O cágado permanece escondido por meses ou anos a fio,
mas se repentinamente sai da loca e começa a andar sem destino, a aparecer onde
normalmente ninguém espera, então é porque sente que trovoada se aproxima. Quem
quiser pode tirar a prova: quando o trovão ribomba o cágado já pode ser
facilmente encontrado no meio do mato ou arredores.
Após
encontrarem os cágados, os dois velhos sertanejos começaram a orar agradecidos
pela chuvarada que logo cairia. Dito e certo. Não demorou muito e o horizonte
escureceu totalmente, as nuvens prenhes e sombreadas tomaram conta do céu, os
trovões barulharam, relâmpagos chisparam faiscantes. E a torrente começou a
cair lá de cima e a se espalhar sertão adentro.
A chuva forte também na
sua nascente, lá pelas bandas da Guia, fez com que o riachinho que
corta o Poço Redondo renascesse do seu leito moribundo. O que antes era apenas
uma cavidade feia, devastada, agonizante, entrecortando o sertão, logo se
encheu de vivacidade quando suas águas começaram a avançar ferozes e famintas.
E veio
arrastando tudo, trazendo toco de pau, galho, garrancho, ossada de bicho morto,
imundícies acumuladas dentro do seu seio e nas suas margens. Chegando como
melodia molhada, espumando vida nas águas turvas, barrentas, valentes. Somente dois
dias depois, com mais chuvas na nascente e renovadas as enchentes, é que alguém
pode se arriscar a dar um mergulho.
Diferente de
outros tempos, quando a meninada ficava o dia inteiro se banhando nas águas
limpas e pulando das pedras grandes, hoje as enchentes do riachinho servem mais
para aguçar a memória sobre a sua realidade, para que os mais jovens comprovem
a sua existência e a sua vivacidade. E também o encantamento em cada olhar
diante do seu leito. Apenas isso.
Mas a verdade
é que depois de tanto tempo o estreito rio se viu tomado de águas novamente. Os
tanques e açudes também se fartaram, a terra ficou encharcada, tudo mudou de
repente. Mas apenas a chuva de trovoada não garante a sobrevivência no sertão.
Se outras águas não caírem em seguida, não dura muito e tudo começa a secar
novamente. A voltar o sofrimento.
Até que um
cágado saia novamente de sua loca.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Se você gosta de ler histórias sobre "Cangaço" clique no link abaixo:
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário