quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

CHUVARADA (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

CHUVARADA

No alto sertão sergipano, lugar de um povo de tantas preces e fervorosas orações, os rogos foram ouvidos e a chuva chegou com feição de trovoada. O sol se escondeu um tiquinho, as nuvens prenhes avançaram, o horizonte sombreou e o pé-d’água caiu.

Chuva forte mesmo, chuvarada das grandes, dessas de pingo grosso e que se derrama como enxurrada por cima da terra. Tudo seco demais, tudo fraco demais, tanta água por cima causa estrago maior que o imaginado. É pancada no couro do bicho magro, açoite na árvore seca, ameaça à casinha de taipa.


Quando primeiro vai caindo chuva mais fraca, apenas molhando o chão, adentrando no seio da terra e fazendo com que as plantas e os animais se sintam novamente regados por aquilo que tanta falta lhes fez, se diz então que pode cair a trovoada maior do mundo. As águas famintas, tantas, abruptas, já não provocam danos inesperados.

Mas sem chuva preliminar, sem que a terra já tenha sido molhada, a chuvarada repentina pode provocar graves consequências. Ora, a terra está seca, dura, esturricada, e toda água que bate em cima não tem nem tempo de ser absorvida, pois simplesmente se acumula e vai seguindo adiante, formando enxurradas e derrubando tudo que encontrar pela frente.

E foi assim que aconteceu no sertão. Depois de quase três anos de seca inclemente, a essa altura com a fome e a sede se espalhando em cada canto, com os descampados recobertos de ossadas de animais e o valente sertanejo sem ter mais o que fazer, enfim, de uma hora pra outra, caiu a chuvarada de assustar.

No estágio devastador que estava, com cada raio de sol caindo em fornalha, as pessoas olhavam para o alto e ficavam cada vez mais desesperançadas. Tão cedo gota d’água não cairia ali, diziam um e outro. Ora, nenhum sinal de formação de nuvem de chuva, nenhum passarinho voejando diferente, nada que estivesse preparando a paisagem para a molhação.

Contudo, um cágado apareceu na mataria e um velho sertanejo logo brilhou o olho. Quando um compadre disse que tinha avistado outro cágado saindo de uma loca, então não havia mais do que duvidar. Cairia chuva na certa, e trovoada. Somente o cágado sertanejo anuncia com precisão a chuvarada que vem.

É sabedoria antiga tida como certa. O cágado permanece escondido por meses ou anos a fio, mas se repentinamente sai da loca e começa a andar sem destino, a aparecer onde normalmente ninguém espera, então é porque sente que trovoada se aproxima. Quem quiser pode tirar a prova: quando o trovão ribomba o cágado já pode ser facilmente encontrado no meio do mato ou arredores.

Após encontrarem os cágados, os dois velhos sertanejos começaram a orar agradecidos pela chuvarada que logo cairia. Dito e certo. Não demorou muito e o horizonte escureceu totalmente, as nuvens prenhes e sombreadas tomaram conta do céu, os trovões barulharam, relâmpagos chisparam faiscantes. E a torrente começou a cair lá de cima e a se espalhar sertão adentro.

A chuva forte também na sua  nascente, lá pelas bandas da Guia, fez com que o riachinho que corta o Poço Redondo renascesse do seu leito moribundo. O que antes era apenas uma cavidade feia, devastada, agonizante, entrecortando o sertão, logo se encheu de vivacidade quando suas águas começaram a avançar ferozes e famintas.

E veio arrastando tudo, trazendo toco de pau, galho, garrancho, ossada de bicho morto, imundícies acumuladas dentro do seu seio e nas suas margens. Chegando como melodia molhada, espumando vida nas águas turvas, barrentas, valentes. Somente dois dias depois, com mais chuvas na nascente e renovadas as enchentes, é que alguém pode se arriscar a dar um mergulho.


Diferente de outros tempos, quando a meninada ficava o dia inteiro se banhando nas águas limpas e pulando das pedras grandes, hoje as enchentes do riachinho servem mais para aguçar a memória sobre a sua realidade, para que os mais jovens comprovem a sua existência e a sua vivacidade. E também o encantamento em cada olhar diante do seu leito. Apenas isso.

Mas a verdade é que depois de tanto tempo o estreito rio se viu tomado de águas novamente. Os tanques e açudes também se fartaram, a terra ficou encharcada, tudo mudou de repente. Mas apenas a chuva de trovoada não garante a sobrevivência no sertão. Se outras águas não caírem em seguida, não dura muito e tudo começa a secar novamente. A voltar o sofrimento.

Até que um cágado saia novamente de sua loca.

(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.

Poeta e cronista
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