Por: José Romero Araújo Cardoso
Professor do
Departamento de Geografia da UERN
Entre as
muitas estórias européias difundidas no Novo Mundo uma das que mais
profundamente marcaram o imaginário popular refere-se às aventuras do
humanitário navegador João de Calais.
No sertão nordestino, quando não havia jornais, rádios, televisão ou qualquer outro veículo de comunicação, foram diversos agentes os responsáveis pela disseminação e encantamentos do povo da hinterlândia pela fantástica estória, a qual teve sua origem registrada provavelmente pela desditada francesa Madalena Angélica Poisson, a Madame Gómez.
Câmara
Cascudo, em célebre e importante opúsculo intitulado Cinco Livros do Povo,
enfatiza que a maior informação portuguesa sobre João de Calais devemos a
Teófilo Braga, referendando-se em trabalho de autoria desse intelectual
lusitano, publicado em Lisboa, no ano de 1885, o qual traz o título de O Povo
Português nos Seus Costumes, Crenças e Tradições (II).
Cascudo não
deixou ainda de fomentar dúvidas a respeito da real autoria das aventuras e
desventuras de João de Calais, baseando-se em informações colhidas por Mme.
Monique Cazeaux-Varagnac, alicerçadas em pesquisas do estudioso francês Antoine
Barbier, as quais apontam para um certo Jean Castillon, provavelmente um
pseudônimo de autor anônimo, como o verdadeiro autor da história que cativa há
séculos boa parte da raça humana, sobretudo no denominado ocidente, cuja
conceituação tem fortes vínculos europocêntricos.
Contadores de
estórias, repentistas, violeiros e cordelistas, os quais desfrutavam de imenso
prestígio em fazendas, vilarejos e povoados espalhados pela imensidão das
caatingas nordestinas, são os responsáveis pela popularidade que a fábula
européia granjeou, a qual ainda se reflete extraordinariamente, pois gerações
sucessivas que aqui habitaram a tornaram imortal, espelhando importante fomento
à cultura popular regional.
Câmara
Cascudo, em razão da extrema seriedade de suas importantes notas sobre a
História de João de Calais, destaca que a versão original trazia sua
ambientação no reino português, modificando-se quando da tradução, visto que
houve alteração da feição da redação de Madame de Gómez, substituindo o porto
de Lisboa e o reino de Portugal pelo porto de Palermo no reino da Sicília.
O cerne que
norteia a História de João de Calais está na valorização de valores humanos,
efetivados de forma proeminente pelo protagonista. O herói, cansado de
incursões de piratas argelinos, conforme ainda Câmara Cascudo, decidiu
combatê-los e expulsá-los, terminando por se perder em terras estranhas, cujos
valores considerados negativos foram combatidos pelo navegador.
Filho único de
um rico comerciante, João de Calais se compadece da triste sina destinada a um
cadáver de homem cheio de dívidas, resgatando ainda moças raptadas por piratas.
Constanza e
Isabel são libertadas pelo navegador, sendo a primeira desposada por João de
Calais, embora omitindo sua linhagem nobre, visto se tratarem de princesas.
Retornando a Calais, João amargou humilhações do genitor, o qual pensava ser a
nora reles plebéia. Na tentativa de separar o filho da amada, o rico mercador
contribuiu para que a verdade viesse à tona, quando o navegador João de Calais
ruma para Palermo, a fim de implementar os negócios da família.
A história do
amor de João de Calais e da princesa Constanza tem a primazia de dar ênfase à
complexidade da natureza humana, fundindo amor verdadeiro, ódios, intrigas,
traições e desencontros. O final feliz da história, fomentado na maioria das
vezes, em razão de que, para agradar o povo, fazia-se necessário buscar a
vitória do bem dentro da essência maniqueísta que permeia boa parte dos contos
de época, invoca o sobrenatural, quando João, depois de anos perdido em uma
ilha deserta no mediterrâneo, após ter sido atirado de um barco por um primo de
sua esposa, de nome Florimundo, quando atravessavam violenta tempestade, é
ajudado pela alma do morto que lhe deixou compadecido, impedindo-se dessa forma
o casamento de Constanza com o perigoso parente.
Em cento de
vinte e sete estrofes, Arievaldo Viana Lima segue perfeita sincronia entre rima
e métrica a fim de contar a história completa do navegador João de Calais, em
folheto que traz o número sessenta e dois da Coleção de Cordel publicada pela
Editora Queima-Bucha. O trabalho traz xilogravura de capa do próprio autor,
cuja publicação se concretizou em dezembro de 2005.
Aproveitando
inspiração singular em um dos mais importantes livros do povo, cuja divulgação
tem um profundo vínculo histórico com a cultura popular, Arievaldo Viana
proporciona momento antológico à autêntica Literatura Nordestina, cujos
parâmetros gerais se encontram na estreita relação com o processo de identidade
que fomenta o reconhecimento regional de forma extraordinária.
(*) José
Romero Araújo Cardoso. Geógrafo. Professor Adjunto do Departamento de Geografia
da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte. Especialista em Geografia e Gestão Territorial e em
Organização de Arquivos. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente.
Enviado pelo autor
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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