Por: Rangel Alves da Costa(*)
O
OUTONO DA VIDA NUMA TELA DE MUNCH
Pintada em
1889 pelo artista norueguês e precursor do expressionismo alemão Edvard Munch
(1866-1944), a tela recebeu o singelo nome “Primavera” (The National Museum of
Art – Oslo). Contudo, prefiro denominá-la de forma mais realista, mais
verdadeiramente reflexo do que logo expressa, e assim intitular a pintura de “O
Outono da Vida”. E justificarei.
Ora, uma
pintura batizada “Primavera” logo remete ao leitor, que não está diante da
tela, a imaginar uma paisagem alegre, florida, com motivos contagiantes. Mas o
que ocorre no trabalho do artista é totalmente diferente. A estação das flores
logo dará lugar ao outono, a estação das folhas entristecidas.
A pintura há
de ser descrita pelo que verdadeiramente expressa e contém. Na sala da frente
de uma casa, ao entardecer, a mãe faz vigília à filha doente. Mãe e filha estão
sentadas próximas uma da outra, de vestidos escurecidos, em tons lúgubres,
fechados, longos e de mangas que vão até as mãos; as duas com cabelos lisos e
presos, sendo os da filha em tons alaranjados.

Diferentes são
também as duas feições. O aspecto magro e triste da mãe, que segura nas mãos um
copo com água ou algum remédio dissolvido, e volta o olhar cuidadoso em direção
à filha. E nessa posição parece dizer: “Toma minha filha, é o seu remédio”. Ao
que esta apenas olha, sem interesse algum em ingeri-lo.
A filha
doente, totalmente esbranquiçada, de tez pálida e magra, rosto fino, encovado,
mostra um aspecto visivelmente doentio, com olhos levemente repuxados,
distantes e sem cor. Tem na mão um pequeno lenço florido. Será levado aos
olhos, talvez ao nariz; tão próprio para enxugar o frio suor dos doentes.
A tristeza se
abate sobre a doente. Não se preocupa em olhar para a bela paisagem que está
adiante, para o cortinado em véu dançando ao vento; não atenta para os dois
caqueiros com suas plantas, para as flores ali e acolá. Para não sentir a
aragem, não sentir nada, vivendo somente seu distanciamento da vida. Por isso
mesmo está com a cabeça um pouco recurvada, virada de lado, como se evitasse
olhar para a pujança da vida lá fora.
No ambiente
avista-se ainda um móvel antigo ao fundo, uma mesa forrada e arredonda onde se
avista uma jarra de água, um frasco (certamente de remédio), uma bandeja e um
pequeno objeto oval (talvez um chumaço), e mais adiante, defronte as duas, um
móvel pintado de branco, logo antes da janela, no qual estão colocados os
jarros de plantas. E a janela de vidraças entreabertas, moldurada pelo
cortinado leve que baila ao sabor do vento da tarde. Lá fora uma paisagem, a
natureza.
Sim, lá fora,
na paisagem pretendida pelo artista talvez seja primavera. Percebe-se que o
vento sopra algo como brisa mais acentuada, e mais adiante, após a janela, há
uma paisagem disforme, nebulosa, com suas cores e tênues formas entre o amarelo
e o acinzentado. Mas ainda assim não se percebe nada que sinalize a primavera.
Em toda a tela
estão presentes as cores próprias do outono, entristecidas, desbotadas, sem
qualquer pujança primaveril. O ocre, o esbranquiçado, o marrom, o acinzentado,
o escurecido. E nas pessoas os aspectos tão conhecidos da tristeza, do
sofrimento, da angústia, da melancolia. Assim, se ela está retratada uma
estação, outra não será o outono, e o outono da vida que se despede.
E essa mocinha
adoentada e triste morrerá. Não nesta tela, mas noutras que sinalizam para tal
fim. A mesma pessoa está acamada, com a feição mais agonizante ainda, e ao lado
da mãe que a pranteia, noutra tela de Munch denominada “A Menina Doente”. Sobre
esta pintura de extrema expressividade, e com o mesmo título consignado pelo
pintor, certa vez escrevi:
“Na obra, toda
construída com pinceladas fortes e de cores escurecidas, muitas vezes chegando
ao negro para expressar um sentimento doloroso perante a situação retratada,
logo se vista um quarto onde repousa uma enferma. Nela vê-se uma jovem de pele
clara (ou seria da palidez doentia?), cabelos lisos em tons avermelhados,
vestida de negro, com mangas que chegam até os pulsos, com feições ainda de
reconhecida beleza, deitada no seu leito, com os braços estendidos sobre uma
colcha também escurecida e o rosto levemente voltado para uma mulher que segura
na sua mão.

A menina
doente não, pois possui no semblante uma aceitação própria do seu estado, que é
tão própria dos enfermos que parecem querer confortar os outros com o seu
padecimento e até proximidade do fim, mas a mulher é a mais pura demonstração
de angústia e aflição. Sentada ao lado do leito, segurando com as duas mãos a
mão esquerda da parenta ou filha, na sua cabeça baixa e no seu corpo curvado,
residem toda a dramaticidade pretendida pelo artista.
Não precisava
que ela levantasse a cabeça para dizer de sua dor lancinante, nem deixasse os
olhos à mostra para dizer de suas lágrimas incontidas. Talvez seja uma mãe sim,
e talvez ali esteja sua filha, menina muito doente recebendo o aconchego da
genitora. Mas que consolo, que lenitivo, que carinho, se a completamente
desconsolada é a própria mãe que chora, que grita por dentro, que não sabe mais
o que fazer diante daquela situação?”.
E ainda
noutra pintura, então intitulada “No Leito de Morte”, a família está rodeando o
corpo sem vida da mocinha. É uma triste e dolorosa trilogia, mas é assim que a
fragilidade da vida nos é mostrada pelo genial artista norueguês.

(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta
e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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