Por: Rangel Alves da Costa(*)
POTE,
CABAÇA E MORINGA
Nunca mais
tinha avistado o meu amor. Todos os dias, mesmo sem nada ser, ela era meu amor
tantas vezes. E era um amor tão amado que eu havia jurado a mim mesmo jamais
colocar aliança no dedo de moça que não fosse ela.
Logo cedinho e
a descobria já toda bonita, de balde na cabeça em direção ao tanque. Ao
retornar, encontrava sempre uma flor do campo no umbral da janela. Segurava,
sorria, olhava de lado e depois enfeitava seu cabelo. Escondido, por trás de
uma moita, eu ficava em tempo de endoidar.
Mais tarde,
mas principalmente ao entardecer, esperava a janela abrir e ela aparecer tão
bela igual à princesa mais bela do reinado mais belo do mundo. O reinado
sertanejo, esse mesmo de sol no meio da noite e calor nadando no pote. De
cabelo solto, olhos negros esvoaçantes, sempre um doce sapoti ao meu olhar.

Um dia tomei
coragem e pedi ao vento que segredasse a ela minha paixão. Até hoje não tive
resposta, mas sei que ficou sabendo e até achou bom. Sei disso porque um dia
recebi um sorriso. Passando diante de sua janela, olhando no seu olhar,
tropecei numa pedrinha e cai. E ela sorriu. Por isso sei que gostou do segredo.
Mas nunca mais
vi minha bela flor. Todos os dias passo diante de sua porta, de sua janela,
sinto que pessoas estão lá dentro, mas nunca mais consegui avistá-la.
Desesperado, um dia quis bater à porta do casebre e perguntar o que estava
acontecendo. Mas não tive coragem não. Se ela tivesse partido eu não suportaria
a separação.
No dia
seguinte chorei de saudade pela primeira vez. Não sei bem se de saudade ou de
amor, mas foi um choro tão triste, com um aperto tão grande no coração que
naquele mesmo instante resolvi tomar uma decisão. Acontecesse o que
acontecesse, mas ainda naquela tarde bateria à sua porta.
Não era nem
porta, não era nem casa, não era nem moradia digna de se viver. Apenas uma casa
de taipa, levantada na ripa, no cipó e no barro, com portas e janelas de tábuas
que pareciam querer desabar a qualquer instante. Um lugar onde família se
abrigava fingindo ser moradia. Mas fui até lá.
Com um cestinho
de araçá numa mão e uma florzinha de estrada na outra, ao me aproximar decidi
que seria melhor primeiro dar uma espiadinha por uma das tantas frestas na
velha porta de ripa. Caminhando mansamente, em silêncio absoluto, me aproximei
e comecei a olhar. Corri o olho até avistá-la lá no fundo, talvez na cozinha.
De repente ela
sumiu da minha visão e então o meu olho começou a passear pelo ambiente não
tanto escurecido por causa de uma janela do lado aberta e o telhado faltando em
vários locais lá por cima. E o que pude avistar me cortou coração.
Casebre
pequeno de não ter mais que quatro pequeninos cômodos, pela fresta dava pra
avistar quase tudo que havia lá dentro. E não avistei mesa, cadeira,
cristaleira, qualquer outro móvel, a não ser dois tamboretes e um tronco de
madeira deitado num canto.
E também um
pote em cima de uma forquilha, uma cabaça pendurada num canto da parede e uma
moringa de barro. Porém vazia, pois estava deitada em cima de um tamborete. E
fiquei imaginando que aquilo tudo era pra conservar e carregar água: o pote, a
cabaça e a moringa.
Pendurada num
canto, certamente não havia qualquer gota d’água na cabaça; deitada no
tamborete, não havia qualquer pingo na moringa. Só restava o pote. E mirei o
olho na direção do vaso de barro. Olhei de cima a baixo e o pior se confirmou:
o pé de pote não estava suado, molhado. Era sinal de estar vazio.
Mais de ano
sem chover, tudo esturricando ao redor, não havia mais nem lama nas aguadas e
tanques. Talvez tivesse sido por isso que nunca mais a tinha visto de balde à
cabeça, seguindo em direção ao tanquinho. Meu Deus, ela e sua família devem
estar passando fome e sede, mas não vejo sombra de outra pessoa que não a dela.
Pensei entristecido. E bati à porta. Uma vez, duas, e cada vez mais forte.

Ela apareceu
correndo pelos lados do fundo. E no canto do casebre, apenas mostrando a
cabeça, disse que se estava procurando os seus pais eles não estavam ali.
Tinham ido embora fugindo da seca. E ela já estava de partida também, e naquele
momento.
Quase enlouqueci
ao escutar as últimas palavras. Tudo que não queria ouvir. E num verdadeiro ato
de insanidade pedi que me desse uma caneca d’água antes de partir. E ela
respondeu que era por isso mesmo que estava indo embora, porque não restava
mais nem um pingo no fundo do pote.
Então
endoideci de vez. Pedi uma enxada e comecei ali mesmo, diante da porta, a
cavar, cavar, e cavar ainda mais. No meio da noite, debaixo da lua, a água
irrompeu da terra em esguichos. Então gritei que trouxesse a moringa, o pote e
a cabaça.
Mas primeiro
ela trouxe uma caneca para matar minha sede. E de toda sede ela me saciou. E
ainda hoje olho com gratidão para a moringa, a cabaça e o pote.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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