Por: Rangel Alves da Costa(*)
ÔI
DE CASA!
No meu sertão é assim. Seja choupana ou casa de alvenaria, seja tapera ou
bangalô, seja barraco ou casarão, pra se chegar à porta exige que se tenha
formalidade. E cerimonial matuto já se viu, consiste no mesmo dizer para ser
atendido, e geralmente com a costumeira resposta.
Ôi de casa! Grita antes ou depois de bater palma. Ôi de fora, queira se
anunciar que é pra ser atendido! Responde quem está lá dentro, ainda que saiba
quem está do lado de fora pelo reconhecimento da voz. Mas de qualquer sorte o
ato formal de chegada e recebimento está cumprido.
Quando é um parente que chega, ou mesmo pessoa amiga e conhecida, o diálogo
seguinte é geralmente curto. “Cuide de abrir logo essa porta muié de Deus, num
vê que o sol tá em tempo de esturricá tudo!”. Apressa-se quem continua à porta.

Do lado
dentro, já se encaminhando para dar passagem, para abrir ferrolho ou cadeado,
vem entremeando palavras: “Se avexe não fia de Deus, se avexe não. Pió quem num
pôde chegar pruquê num teve perna pra se alevantar!”.
“Se avexe que tô cum sede!”. “Traga moringa no bucho!”. “Tá breu de bicho
aparecer”. “Baixe a saia pra ele num ver!”. “Ande logo que trago nutiça boa!”.
“Deus do céu, vou avoando!”. “Antes de abrir a porta tome logo uma garapa bem
açucarada!”. “Quem morreu?”
Assim é o proseado inicial travado entre conhecidas, pessoas que quase todos os
dias se visitam para colocar a conversa em dia, falar sobre a vida dos outros,
lamentar a sorte, chorar a morte de alguém. Mas também para festejar os poucos
instantes de contentamentos surgidos naquele mundão de sofrimento e desolação.
Mas quando quem chega é pessoa estranha, forasteira, desconhecida, a coisa muda
de tom. Ainda que o rito inicial de chegada seja o mesmo, com o “ôi de casa”
acompanhado da confirmação que deseja ser atendido, daí em diante é esperar a
resposta também diferenciada e a esperança de ser acolhido no seu bater de
porta.
Contudo, situações existem que fogem totalmente da normalidade caipira, do
cerimonial sertanejo de chegada e acolhimento. Eis que de repentes surgem
situações deliciosas de se ouvir, de uma poesia matuta que alegra coração de
vento e passarinho. E o meu também, pois sou de lá sim senhor!
E chega o tropeiro, o caixeiro-viajante, o ambulante, o cigano, o viajante de
terras distantes, o retratista, o velho engraxate, qualquer um que chegue
cansado da luta e da caminhada, e sedento ou faminto, ou querendo vender seu
pano de chita, ler a sorte na palma da mão, e vai logo dizendo ao bater a
porta:
“Senhora dona da casa, ouça meu verso em flor, mas não sou poeta cordelista,
muito menos trovador. Venha apreciar minha chita, pois sou humilde vendedor!”.
“Quem está de dentro me escute. Venho de longe cansado, com sede e esfomeado,
mas não quero esmola não, bastando que o bom coração me permita aqui sentar,
nessa sombra refrescar, até seguir meu caminho. Mas se tiver sobra de pão,
posso aceitar um tiquinho!”.
“Senhora do lar e paz, bate à porta um incapaz. Incapaz de seguir adiante se ao
menos um instante a essa porta não chegar. Venha que quero mostrar uma lavanda
grã-fina, uma boneca de menina, um corte bonito de pano. E tem mais se não me
engano. Para o esposo sapato, e também porta-retrato para guardar a família!”

“Ôi de casa, ôi do lar, quem estiver por aí e quiser ouvir um recado que trago
de muito distante. Não tema que sou de paz e quero apenas dizer o que me foi
pedido por alguém que certamente sente muita saudade. João, o seu filho mais velho,
me pediu pra passar aqui e dizer que no próximo mês vai chegar. E pediu por
tudo pra não esquecer de dizer: quer uma coalhada branquinha, uma umbuzada
docinha e um doce de leite com bola. E também uma buchada com a cara desse
lugar abençoado!
E
assim são as idas e vindas naqueles sertões. Pessoas que chegam, batem à porta,
e gritam a própria existência. Ali, naquele meu sertão, toda palavra é vida, é
reza e oração. Ainda que o linguajar seja sujo de terra e molhado de suor, não
há palavra mais doce de se ouvir.
Por isso mesmo ando agoniado para retornar, bater na porta de todo mundo e
dizer: “Ôi de casa!”.
Biografia do autor:
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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