Por: Rangel Alves da Costa(*)
MEMÓRIAS
TRISTES DO CASARÃO
Num tempo
muito distante, tempo de chibata e negro gemendo de dor, ali era casarão
imponente, erguido com paredes de metro de largura e estas cravejadas de pedra
bruta. Cada pedra, cada punhado de cimento e cal, e cada pedaço de ferro, tudo
molhado pelo suor escravo e pelo seu sanguejorrado das mãos e corpos lanhados e
dilacerados.
Com a morte do
velho senhor, coronel latifundiário e dono de gente e bicho, e mais alguns
humanos tornados animais, o filho doutor chegou da cidade para tomar posse do
espólio. Herança grande, valiosa. Filho único, mais afeto às raparigas do que a
terra, logo tratou de se desfazer daquela riqueza toda. E assim vendeu o
casarão com tudo ao redor a quem lhe ofereceu maior valor.

Mas quando o
novo proprietário tomou posse definitiva dos bens, já não pôde mais contar com
a negraria escrava. Aproveitaram a morte do malvado coronel para fugir mata
adentro, e levando consigo a quantidade de animais que puderam vaquejar no meio
da noite, nas sombras dos medos e temores. Ainda que levassem tudo não pagaria
nem a metade de tanto sofrimento.
E no meio da
noite, cortando apressadamente as veredas, fugiram num passo corrido, mas
entoando um velho e misterioso canto das horas solitárias e desesperançadas,
cheias de dor e agonia, e que na mata ecoava assim: “Ayê katu, ayá ié ô, ayê
katu ayá iê, ayê katu. Katu m’mbola ayá ayê, katu m’bola i’kdô, katu k’dô...”.
A coruja piou assustada. Conhecia esse canto. O canto desesperado ela conhecia.
E também piou: “katu k’dô, katu k’dô...”.
Assim, ao não
encontrar mais a numerosa mão-de-obra escrava nem a quantidade de animais que
imaginava haver comprado, o novo proprietário tentou desfazer o negócio a
qualquer custo. E não deu saída ao herdeiro-vendedor: ou entregava todos os
bens negociados, inclusive os escravos, ou teria de devolver o dinheiro. Ou
fazia isso ou o pior lhe poderia acontecer. Era ameaça.
Então, na
cidade grande mesmo o ameaçado resolveu tomar a dianteira das ações.
Raparigueiro, gastador contumaz, mas astuto e traiçoeiro demais. E não demorou
muito não. Contratou pistoleiros e mandou eliminar o coronel e quem estivesse
ao seu lado. E assim, ao cair da noite, no alpendre do casarão, se findou uma
família inteira. Uma rajada de balas matou do mais novo ao mais velho.
E o coronel
havia dispensado todos os jagunços no dia anterior. Traria uma nova leva de
outro lugar. Desse modo, naquela noite estava totalmente desprotegido, de corpo
aberto. Pensou que a valentia lhe bastava, nem imaginou que o outro tinha o
mesmo sangue peçonhento do pai, nem se deu conta que havia mandado ameaçar uma
cria de cascavel. Cobra criada rastejante noutras tocas.
Com a morte
dessa família, e sem que o ex-proprietário colocasse novamente os pés por ali,
jamais apareceu qualquer herdeiro que reclamasse a posse da propriedade. Corria
de boca em boca que o sinhôzinho da capital mandaria encher de bala quem se
atrevesse a dizer que tinha parte naqueles bens. Verdade é que poucos sabiam da
compra feita, do dinheiro pago, da transmissão. Até imaginavam que a chacina
fora motivada pela posse sem pagamento.
Mas quase não
havia mais bens, apenas uma imensidão de terras, umas poucas cabeças de gado
dispersas pelos descampados, meio mundo de cobras debaixo das pedreiras, preás
e calangos correndo de canto a outro sem serem incomodados. Até o casarão
estava abandonado, com suas paredes antes sólidas já demonstrando fragilidades.
Portas no chão, janelas abertas, a ventania e os bichos da noite fazendo festa.
Quem passava
pelas estradas ao redor e avistava aquela situação de abandono e dolorosa
solidão chegava a molhar os olhos. Era a dor da recordação, o choro da
lembrança, a angústia no pensamento. Mas não saudades dos seus habitantes, dos
escravos e trabalhadores mantidos a chibata, da realidade tão cruel que todos
sabiam existir ali, e sim da grandeza do lugar, da imponência do casarão, da
riqueza por todo lado. E agora somente o abandono, o vazio e a solidão.

Os anos
passaram e a situação ficou mais lamentável ainda. O que era pasto ficou tomado
de mato, o que era curral ficou tombado ao chão, o que era mourão foi comido
pelo cupim, o que era caminho foi tomado de galhos e folhas secas trazidos
pelas constantes ventanias. E quanto mais forte era o vento mais zunia triste
ao redor dos restos de tudo. Ao entrar nas portas e janelas parecia um gemido
de dor, um lamento de almas aflitas.
Ao cair da
tarde, quando as sombras do dia desciam pelos ossos do casarão, dizem que tudo
se transformava por ali. Quem se atrevia a passar por perto relatava histórias
terríveis, visões aterradoras, momentos de arrepiar e fazer correr. O velho
coronel aparecia na porta com o seu inseparável terno branco e de chibata à mão
começava açoitar o vento.
E o vento
sentia, gemia, chorava, e entoava uma velha e negra canção de dor e agonia:
“Ayê katu, ayá ié ô, ayê katu ayá iê, ayê katu. Katu m’mbola ayá ayê, katu
m’bola i’kdô, katu k’dô...”. Uma coruja piava assustada. Tanto conhecia esse canto.
O canto agonizante ela conhecia. E também gemia: “katu k’dô, katu k’dô...”.
Biografia do autor:
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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