segunda-feira, 12 de novembro de 2012

DE BARRO E CIPÓ (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

DE BARRO E CIPÓ

O açoite da natureza, uma tristeza danada. Mais de dois anos sem cair gota d’água, e de repente o tempo escurece e as nuvens escuras despontam ao longe. É chuvarada na certa, e muita, e da boa, vai um sertanejo repassando ao outro.

Os olhos chegam a lacrimejar; um coração apertado, uma graça divina. É tarde e parece que já é noite de tanto escurecimento no horizonte. Se os trovões e os relâmpagos já tivessem dado os seus sinais era certeza de trovoada das grandes, mas pelo jeito era tempestade repentina formada lá por outras paragens. E agora se encaminhava naquela direção.

Mas antes de cair qualquer pingo de chuva, antes mesmo que as nuvens prenhes começassem a derramar seus molhados, eis que a ventania irrompe pelas montanhas, faz viagem apressada e chega soprando veloz. E que doloroso açoite, que chibatada na vida. Trazia molambo no ar e no chão encontrou logo o barraco desde muito caindo aos pedaços.


Assim que o dono da casa ouviu o zunido gritou pelo amor de Deus, berrou chamando os seus e correram aos atropelos em qualquer direção. Não deu tempo de levar nada de casa, nem uma roupa, nem um chinelo, nada. A boneca de pano ficou estirada no chão de barro, o cavalo de pau do menino permaneceu pendurado numa ripa. Mas por pouco tempo.

A ventania veio certeira, faminta, veloz, voraz, com sede de levar tudo que encontrasse pela frente. E ao longe a família chorava ao ver o casebre completamente destruído pela passagem da lufada inclemente. Não ficou nada, absolutamente nada em pé. O pouco que possuíam ficou debaixo de escombros. Grande parte da vida estava ali.

E no segundo depois o aguaceiro começou a cair volumoso, forte, parecendo uma caixa d’água revirada lá em cima. O restante do dia assim, virando a madrugada e a mesma molhação até o entardecer. Restos, pedaços, troncos, galhagens, folhagens, tudo jogado, misturado ao lamaçal.

Na noite as águas já estavam mais volumosas, já escorriam por cima das pedras rasteiras, já formavam enxurrada por todo lugar. A boneca de pano já estava longe; o cavalo de pau galopando veloz noutras trilhas. E também o sonho da menina, a alegria do menino, a esperança da família.

Não restou absolutamente nada que pudesse ser recolhido. Do casebre apenas o lugar lamacento, e nos caminhos seguidos pelas águas valentes apenas os restos dos restos, dos restos do nada. Uma tampa de panela, uma panela amassada, um copo de plástico. A velha moldura da imagem do santo foi parar toda torta num galho de catingueira. O menino perguntou se alguém tinha visto o papagaio. Ninguém respondeu.

Não adiantava continuar chorando, lamentando, em total desespero. Acostumados a tanto sofrimento, agora só restava esperar a tempestade passar para recomeçar tudo de novo, erguer um novo barraco, colocar uma porta na frente e outra atrás e dizer que ali era o lar da família. E mais tarde colocar uma plaqueta dizendo que ali mora uma família feliz.

Mais sorte tiveram os outros, os vizinhos. Muita parede desabou, mas nenhuma casa caiu. Apenas aquela. E como na história bíblica da arca depois da tempestade, assim que o passarinho passou voando e um raio de sol rasgou a nuvem para despontar, chegou um amigo, chegou um vizinho, chegou até quem não se esperava que chegasse ali. Mas não para visita, para chorar o sofrimento, mas para erguer nova moradia.

Barro não faltava, cipó também não, galho de árvore por todo canto, e foi tudo sendo juntando defronte ao mesmo lugar do casebre derrubado, desfeito, levado. E chegaram as enxadas, as pás, os enxadecos, os facões, as facas. E os braços se firmaram, os corpos curvavam no trato do barro, as mãos trançavam o cipó nas forquilhas, outras mãos fincavam paus. E o barro pronto, o barro jogado, a parede erguida, o próximo tapume, um vão mais um vão, e a casa de barro erguida.


Telhado de folha de bananeira, porta de pano, até a vida melhorar. E quando a vida melhorar, antes de qualquer coisa, será preciso comprar uma boneca de pano e um cavalo de pau. A mãe bem que poderia fazer tais brinquedos, mas vive ocupada demais fazendo promessas para a casa suportar as chuvas que mais cedo ou mais tarde voltarão.

E o homem cava a terra, joga a semente, limpa o suor e se mostra contente com o que ainda possui. A esperança!
  
Biografia do autor:

(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.


Poeta e cronista
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