Por: Honório de Medeiros(*)
![[Honório+lindo+026.jpg]](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhZIvf16POBxAthXKHGOpXWRXnC0dDeHyy5235c2jM9jlP7gJehZqvcfggNLuBW7fgILaVpWLTSKKg89CYYPWvd2Y0Q9zzkgi009tn0kDs-tFVUtAjz21TLbP571QqlslPl5vPCNp1eLDE/s220/Hon%C3%B3rio+lindo+026.jpg)
Eu e a
garçonete de olheiras profundas concordamos quanto à fotografia na parede. A
noite apenas começava. Mas ela já parecia estar muito cansada. Fiquei tentado a
lhe perguntar se dormira nas últimas vinte e quatro horas. “Melhor não”, disse
aos meus botões. A fotografia - melhor dizendo, a reprodução dividia com
outras, em preto e branco, a atenção dos frequentadores “É a que chama mais
atenção”, disse-me ela, enquanto me servia uma taça de vinho. “Por que será?”,
perguntei-lhe. “Sei lá; porque é bonita”. Furtei-me à tentação de lhe indagar
em que ela se baseava para achar uma reprodução mais bonita que a outra.

"American
Girl in Italy", 1951, by Ruth Orkin
Olhei
novamente a fotografia. Nela, uma americana de mais ou menos vinte anos, na
década de cinqüenta, atravessa um grupo de rapazes italianos postados
aleatoriamente em uma esquina de Roma. Malgrado o nariz empinado e as passadas
rápidas há algo de aflito no seu olhar, causado talvez pela vergonha de tão
exacerbada atenção. Bela obra de arte. Ruth Orkin, que a fez, nos contou que
não foi difícil convencer a americana que conhecera em uma pensão para turistas
a servir de modelo. Tampouco houvera produção. Exceto a idéia apresentada à
moça, todo o restante foi espontâneo.
Contei tudo
isso à garçonete de olheiras e seios fartos. Ela me pareceu interessada.
Comentei como não deveria estar, hoje, a modelo, se fosse viva. “Velha,
enrugada, feia...”, me respondeu, “como eu vou ficar, você vai ficar, todos nós
ficamos com o passar dos anos”.
A noite
começava a ficar febril. Casais entravam, mulheres e homens desacompanhados, a
maioria turista. Quando ela me trouxe a massa, já éramos quase amigos. Tínhamos
ficado cúmplices observando tudo o que se passava ao nosso redor: a solidão do
rapaz da mesa vizinha a dialogar constantemente com seu celular; o casal de
“gringos” que nunca trocava uma palavra um com o outro; as amigas que se
namoravam às escondidas; o louro quase albino - talvez escandinavo - e sua
acompanhante morena quase negra. Cada vez que ela ia, eu perscrutava ao meu
redor o próximo capítulo da novela que extraíamos da noite; e ela me chegava
com novidades da periferia do restaurante, onde meu olhar não alcançava.
“Você não se
preocupa com sua beleza?”, lhe perguntei. “Como assim?” “Essa história de você
trabalhar a noite toda”. “Olhe, eu não me considero feia, embora não seja
nenhuma “miss”; o problema é que não adianta ficar pensando em levar uma vida
de dondoca quando se nasceu pobre. Lógico que eu gostaria de ter tempo pra me
cuidar. Mas até acho que beleza hoje é algo muito comum. Todo mundo é bonito. O
difícil é ter charme”. “Mulher bonita os homens estão comprando aí fora a preço
de banana”.
“Quanto você
ganha aqui, por mês?” “Uns mil”. As meninas, aquelas adolescentes das quais os
jornais e as teses de mestrado em sociologia e a televisão e o congresso falam,
continuam passando em frente ao restaurante. São alegres, palradoras, pelo que
se vê e ouve. Ganham em torno de cem reais por programa. E fazem dois ou três
por dia. Dá uns quatro mil por mês.
A conta chega.
“Posso lhe
perguntar outra coisa?” “Claro”, ela me diz. “Quando você olha para a
reprodução da fotografia, qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça?” “Uma
sensação de que tudo passa, mas permanece. Ontem, era aquela americana e os
rapazes italianos; hoje é qualquer outra... A vida continua, mas é como se
fosse sempre a mesma”. Ela não esperou qualquer comentário meu à resposta.
Talvez já lhe tivessem perguntado isso. Ou, quem sabe, sequer teve tempo para
se perguntar por que eu lhe fizera tal pergunta. Apenas respondeu.
Mecanicamente.
Desço a escada
e ganho a rua. Procuro o carro lembrando um romance que fez furor quando eu era
adolescente: “Sidarta”, de Herman Hesse. Em um certo momento da estória, o
protagonista observa para um seu amigo e discípulo mais ou menos aquilo que a
garçonete havia me dito, contemplando as águas de um rio. Para ele, Sidarta,
assim como para a garçonete, embora as águas estejam sempre indo a busca do
oceano, o rio continua no mesmo lugar. A vida passa mas está. O homem vai mas a
humanidade permanece. Fim de noite.
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