Por: Rangel Alves da Costa(*)
O
RITUAL DA VIDA NA MORTE
Cada cultura
possui ritual próprio de despedida de um falecido. Do pesar ao velório, e
depois do sepultamento ao luto, tudo se manifesta de forma diferenciada segundo
as concepções acerca da morte, bem como as tradições, os costumes e os rituais
próprios de cada povo.
Existem
sociedades que apenas pranteiam seus mortos, dedicam-lhes momentos de despedida
e em seguida promovem o sepultamento. O luto, quando ainda há, deixou de ser
uma manifestação exterior nas roupas escuras, para se tornar numa aflição íntima.
Noutras sociedades, o morto é festejado e, em alguns casos, conservado por
muito tempo ao lado dos seus.

Não caberia
aqui tecer detalhes sobre uma infinidade de rituais existentes nem acerca das
contradições que se apresentam perante os olhares das outras culturas. São
questões antropológicas que só podem ser compreendidas e explicadas
considerando-se os conceitos próprios de cada cultura em torno do pensamento e
da ação diante da morte.
Contudo, o que
importa aqui é relatar um ritual especial, colhido numa sociedade distante,
ainda considerada primitiva perante as acepções da modernidade, e
essencialmente conservadora com tudo que diga respeito à suas tradições e
costumes, preceitos observados e seguidos de geração a geração.
Nesta
sociedade, que aqui será chamada apenas de povo estranho, a morte nada mais é
do que uma doação do corpo aos que ainda continuam vivos; o velório é o momento
para repartir os restos mortais entre alguns escolhidos; e o sepultamento é
basicamente a degustação das partes recebidas do morto. Nada, porém, de ritual
antropofágico ou canibal, já que houve um falecimento natural.
Senão as
cinzas dos ossos já utilizados à exaustão, nada do defunto serve como elemento
de despedida ritual. A não ser a própria cerimônia de desfazimento completo do
corpo. Assim, ao invés de ser preparado o cadáver para ser enterrado, ali mesmo
na residência familiar do falecido tem início o rito de divisão dos restos
mortais entre as famílias que estão passando maiores necessidades naquele
momento.
Como numa
triagem, o líder procura saber quais famílias estão mais famintas, não
conseguem colher os frutos escassos do campo, e filhos menores e idosos já não
têm mais alimento suficiente. Estas pessoas serão escolhidas para receber sua
quota do corpo morto. E ao saberem que serão agraciados com uma perna
estraçalhada ou um braço quebrado, começam a louvar e proferir cantorias até o
momento que o mais velho é chamado para ir buscar o alimento tão essencial para
todos.
As famílias
que serão contempladas com pedaços do morto ficam acampadas nos arredores da
casa, geralmente ao relento debaixo de árvores. De lá ecoam os cantos de
agradecimentos, os louvores que mais parecem grunhidos fúnebres. Os olhos
brilham, as bocas desdentadas se abrem alegremente, as mãos são erguidas aos
céus. No meio deles se avista uma panela. Nela o pedaço do defunto será cozido
para saciar, ao menos por um dia, a terrível fome.
Quando à porta
uma mão se ergue em aceno, apontando numa direção, logo se vê alguém levantar e
ir correndo com a panela à mão. Antes de ultrapassar a porta se joga ao chão
como agradecimento protocolar e ao levantar é levado ao interior da moradia.
Ali, com o corpo já sem várias partes estendido numa mesa, chega um parente do
morto e pergunta quantas crianças e quantos velhos existem na família.
Se apenas duas
crianças e um velho, por exemplo, então o parente resolve na hora, e diante do
que ainda resta, qual o membro que será cortado e colocado na panela. Cada
perna é dividida em dois pedaços; a coxa em três, e assim por diante. Mas a
parte que mais gostam de receber é, sem dúvida a cabeça. Quando o parente corta
a cabeça e coloca na panela, então gritos de prazer e satisfação são ecoados
pelos arredores.

Assim que a
pessoa é chamada para receber o seu quinhão da morte, os outros da família já
começam a acender a fogueira esperando a comida chegar, o pedaço de carne
morta. Ao retornar, decidem ali mesmo se vão colocar apenas água na panela para
o cozido ou espetar em pedaços para assar. Seja cozido ou assado, o alimento é
consumido tão gulosamente que mais parece a melhor das frituras.
Ao estranho
certamente que seria repugnante, nojento, asqueroso, inaceitável, mas a verdade
é que enchem as mãos da carne morta cozida e vão levando à boca restos de
olhos, pedaços de dedos, costelas, unhas, pedaços cabeludos, ossos pequenos ou
grandes. Comem e se lambem, e se lambuzam de tal forma que um óleo logo começa
a escorrer pelos cantos da boca e vai descendo pelo peito.
A única
exigência feita pela família do morto é que todos os ossos, do menor ao maior,
sejam devolvidos depois de chupados, avidamente sugados. Recolhidos, são
colocados num cesto de palha para secar durante sete sóis. Em seguida são
incinerados e jogados da colina mais alta, no momento de vento maior, para
sumir entre os ares, indo ao encontro dos deuses.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
e-mail:
rac3478@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário