Por: Rangel Alves da Costa(*)
ANGÚSTIA
DE CAIS
Sei que na
literatura e na música é muito diferente da realidade, mas verdade é que me
sinto completamente deslumbrado quando leio as descrições de Jorge Amado e
Dorival Caymmi acerca das mulheres entristecidas esperando seus maridos na
beira do cais.
Mas um
arrebatamento remoendo os sentimentos, doendo por dentro, sentindo de perto
aquelas situações, pois é difícil não enxergar na ficção o espelho das
dolorosas realidades das tantas viúvas surgidas nas beiradas das águas. O cais,
a beira do porto, a armação, o murmurejar das águas, a tristeza que tudo começa
a rondar.
E eis que me
ponho a vê-las caminhando de lado a outro, ora molhando os pés ora subindo na
pedra, e tudo para ver se enxerga ao longe, já com as sombras da noite caindo,
algum sinal do barquinho que saiu com seu pescador. E quanto mais o tempo passa
mais aumenta a aflição, o desespero. Elas não querem assim, mas o pensamento só
quer atinar o pior.
Homem do mar,
de rio, das águas piscosas, ribeirinho, pescador, quem surja de onde surgir
para colocar seu barquinho nas águas e seguir singrando, cortando os remansos e
a correntezas, fugindo das pedras e panelas d’água, tentando escapar das forças
misteriosas e arrebatadoras que existem nas profundezas molhadas. É esse homem,
que no barco vai em busca do alimento e do meio de sobrevivência, que mais
tarde, no outro dia talvez, vai causar tanto temor e aflição naquela que ficou
na aldeia.
Esse pescador,
homem experiente das águas, navegante de dias seguidos em busca do melhor
cardume, profundo conhecedor dos perigos, das surpresas em cada canto, não
deixa de ser também o sobrevivente das águas que fica entristecido todas as
vezes que sobe na sua embarcação. E fica triste porque sabe o quanto é perigosa
aquela vida, quantos perigos irá encontrar, as dificuldades que terá até
retornar. Se conseguir.
Sabe muito bem
que a calma das águas é espelho refletido só de um lado, pois tudo realmente
acontece abaixo da lâmina, lá onde o olho humano não consegue enxergar. Conhece
de si mesmo e de outras histórias que a calmaria já nas distâncias azuis não
significa nada mais do que uma situação momentânea, pois a qualquer instante o
horizonte pode escurecer, chegar uma tempestade, as águas se revoltarem e o
barquinho ficar ao desvão. E pouco restará a fazer além de orar aos santos
protetores dos pescadores.
Por saber que
cada partida tem também uma feição de despedida, vez que cada retorno das águas
é uma vitória maior do que os peixes apanhados, é que o pescador busca forças
para se aproximar de sua esposa e dizer que não se preocupe nem fique triste
que ainda naquela noite estará de regresso. Apenas por dizer, para procurar
confortar, pois todos sabem que não é bem assim. Por isso mesmo tanto
sofrimento a cada dia de seguir rumando em águas abertas.
Ele ajeita seu
barco nas águas, tem o cuidado para colocar ali tudo que precisar, mas tudo faz
para não olhar atrás, para avistar a mulher que está logo adiante de lenço à
mão e uma dor terrível no coração. Com a voz embargada, o peito tomado de
aflição, naquele dia ela vive um martírio ainda maior do que nas outras
despedidas. Eis que não conseguiu fechar os olhos a noite inteira com alguma
coisa querendo avisar que daquela vez seria muito difícil o seu retorno.
Logo ao
amanhecer se entregou às orações, acendeu velas, pediu proteção aos santos,
divindades e encantados; fez uma estrada de flores, espalhou loção pelos
caminhos até as águas. Mas agora, vendo o barquinho partir, de olhos marejados
e lenço molhado à mão, outra coisa não podia fazer senão esperar a embarcação
se afastar para correr até a beirada e ali depositar um barquinho enfeitado
para Iemanjá. A mãe e senhora das águas haveria de protegê-lo.
Entregou-se
novamente às preces e orações, aos trabalhos e oferendas. O coração apertado
exigia esse sincretismo, essa junção de religiosidades e forças protetoras. E
de vez em quando olhava o relógio para ver se já se aproximava o tempo do
retorno. E depois do entardecer, sentindo o sopro diferente do vento, correu
até a porta e avistou a vastidão enegrecida no horizonte: tempestade
descomunal!

Com a
chuvarada caindo, a noite se fez de repente. Em pé na beira das águas não temia
a ventania, os raios e trovões. E era no instante que o céu alumiava que ela
tentava enxergar o barquinho voltando. Por amor estava ali, por tanto amor
estava ali, mas sabia que o barquinho não voltaria, muito menos seu pescador.
E foi entrando
nas águas. Cada vez mais seguindo rumo às profundezas enegrecidas. E quanto
mais avançava mais gritava pelo seu homem, pelo seu pescador. Até que a voz foi
sumindo, sumindo. E ela também. Realidade ou ficção, não sei. Só sei que assim
acontece.
Biografia do autor:
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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