Por Rangel Alves
da Costa*
Não sei o
tempo de vida das cactáceas, muito menos do mandacaru. Mas sei que uma planta
que suporta e vence a voracidade da seca grande possui longa e duradoura
existência. Com efeito, quando a estiagem cai de vez sobre o sertão e tudo
começa a acinzentar, encurvar e definhar de vez, com as ossadas e restos se
amontoando pelas paisagens, o mandacaru continuará esbelto e imponente, de
braços erguidos em direção às alturas do céu e do sol.
Mesmo que não
reste nenhuma folha seca nas catingueiras, aroeiras e baraúnas; mesmo que não
nenhum bicho seja mais avistado, que o preá tenha sumido de vez e o calango já
não suba nas pontas de pedras para avistar a destruição; e mesmo que o sol
cortante vá ferindo sua pele já amarronzada e vá fraquejando seus espinhos, ainda
assim o mandacaru continuará suportando toda a aflição da estiagem. E, como
verdadeiro milagre, ainda fazendo brotar um florido contrastante com tudo que
se apresenta ao redor. Mirradinha, porém flor. E flor do mandacaru!
O mandacaru
não é apenas a planta símbolo do sertão como carrega em si muitos mitos, lendas
e curiosidades. Relatam que testemunhou a chegada dos primeiros desbravadores
do sertão sergipano. Após aportarem nas beiradas do Velho Chico, com rebanhos
ou apenas carregando poucos pertences no matulão, aqueles verdadeiros
bandeirantes dos carrascais nordestinos deram início à caminhada civilizatória.
Em meio ao desconhecido, vencendo a mataria e os perigos da terra hostil, foram
desbravando aquelas vastidões inóspitas até fincarem suas raízes nas primeiras
choupanas. Daí o início de tudo, do nada ao quase nada que se tem hoje na maior
parte da região. E o mandacaru já estava lá, avistando tudo, pressentindo como
seria dali em diante.
O mandacaru
avistou ao longe, cortando aquelas trilhas de espinho e pedra, o passo lento de
um povo diferente. Não que fosse de feição desconhecida, pois todos carregando
no rosto e no corpo as marcas tão conhecidas do sertanejo. Contudo, o que
diferenciava era o jeito no vestir, no olhar brilhoso além da normalidade da
gente do lugar, mas principalmente no canto suplicante que ecoava como
verdadeiro lamento. Porém nada igual ao homem que seguia à frente daquele povo.
Um senhor alto, esguio, barbudo, vestido com uma bata escura que descia até o
calcanhar e levando à mão um cajado longo e fino. De vez em quando fincava a
vara na terra e se voltava para seus seguidores, instante em que elevava a voz
com palavras recolhidas na memória do mandacaru: Não cansem, não tenham sede
nem fome, pois caminham pelos caminhos da salvação. E salvos seremos de todas
as injustiças do mundo, em nome do Senhor Nosso Pai. Era Antônio, o
Conselheiro, que acabou construindo uma igrejinha de pedra não muito distante
do lugar do mandacaru.
Ainda hoje a
cactácea guarda no seu tronco magro o sinal de uma dor jamais esquecida. Uma
bala disparada de dentro dos escondidos do mato – por isso mesmo jamais soube
de qual arma saída nem do seu atirador – acabou varando sua carne e indo parar
num tronco de catingueira. Mas sabia que haveria de ser assim, pois fazendo
moradia bem no lugar de passagem de cangaceiros e volantes, uma gente que não
parava de guerrear entre si. Por diversas vezes havia avistado a cangaceirada
se amoitando pelos arredores, sempre de arma em punho e pronta para o enfrentamento
do inimigo. Diferente dos cangaceiros, que rondavam a região quase sem arredar
pé da mataria, os soldados da volante preferiam seguir pelas veredas abertas,
pelos caminhos afastados das pontas de espinhos e dos dentes das cascavéis.
Mas certa feita
estranhou quando o bando cangaceiro despontou lá na curva e veio caminhando na
paisagem aberta. Estavam apressados, é verdade, mas ainda assim conseguiu ouvir
bem quando Lampião disse: Sei que vocês estão cansados. Sei do estropiamento de
todos, pois num á fácil caminhar daquelas distâncias do Raso da Catarina até
aqui. Se lá parecia um deserto de pedra quente de lascar e perigoso demais, bem
sei que não é fácil caminhar pela caatinga seca e espinhenta e tendo ainda que
enfrentar o inimigo a qualquer momento. Tá tudo quieto, parado, mas ninguém
duvide se um cabra da peste cuspir fogo de dentro do tufo dos mato. Por isso
que precisamo botar o solado pra caminhar e chegar logo no Angico. Lá na gruta,
na beira do rio, todo mundo vai ter tempo de se refazer do sofrimento e se
preparar pro próximo passo. E de lá, depois do descanso merecido, só mesmo Deus
pra apontar nosso destino.
Dias depois o
mandacaru ouviu de dois caçadores de passagem aquilo que demorou a acreditar:
Lampião e boa parte daquelas pessoas haviam sido encontrados e mortos pela
polícia volante do Tenente João Bezerra, depois de atravessar o rio na
escuridão da madrugada, a partir das beiradas de Piranhas, nas Alagoas. Após
ouvir tal relato, e até hoje não sabe o porquê, mas entristeceu tanto que não
restou uma só flor. As flores que haviam brotado no alto dos braços,
amareladas, viçosas e bonitas, foram definhando como o próprio sertão nos seus
instantes de sofrimento maior. E foi a primeira vez que um mandacaru chorou
pela morte de alguém. Difícil de acreditar, mas Lampião mereceu sua lágrima.
Até hoje o
mandacaru está lá na beira da estrada. Ninguém sabe sua idade, pois parecendo
eterno. Mas já nem parece com aquele de outros tempos. Seus braços ossudos
parecem não mais implorar qualquer coisa. Também não floresce mais nem se
defende com seus espinhos cortantes. Apenas chora o seu sertão. Ou do que dele
fizeram.
Poeta e
cronista
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