por Romero Cardoso
Marca
indelével da cultura nordestina, a literatura de cordel traduz reações
diversas, ao nível ficcional, de críticas a situações injustas e desejos
internalizados em efetivar mudanças sociais praticamente impossíveis de se
concretizarem no plano real.
O preconceito
com relação à literatura de cordel impediu que um brilhante cordelista
paraibano, radicado no Rio de Janeiro, conhecido por Raimundo Santa Helena,
pudesse concorrer a uma vaga na Academia Brasileira de Letras.
Essa
manifestação, com certeza, está ligada às condições materiais e sócioeconômicas
da produção desse gênero literário, do qual possui vínculos, primordialmente,
com as camadas menos favorecidas, sobretudo no Nordeste brasileiro, riquíssimo
celeiro de cordelistas e repentistas, a exemplo de Leandro Gomes de Barros,
considerado de fato o verdadeiro “príncipe dos poetas brasileiros”, na
expressão simpática de Carlos Drummond de Andrade.
A arrogância
do refinamento “erudito” impede que a literatura de cordel seja valorizada na
forma exata como merece ser, principalmente devido a “má qualidade da
impressão, o pouco caso com a “correção” lingüística, a presença marcante da
oralidade, o fato de ser tradicionalmente vendida em feiras e o tipo de
consumidor, em geral pessoas de baixo nível escolar” (CARDOSO, 2003, p. 11).
No ensejo da
resistência cultural empreendida pelos grandes menestréis das feiras e esquinas
da maioria das cidades regionais, encontramos o homem e a luta pela afirmação
da literatura de cordel personificados em José Ribamar Alves, um dos nobres
guerreiros da cultura popular aquartelado em Mossoró, Estado do Rio Grande do
Norte.
José Ribamar
Alves nasceu em 16 de março de 1962, no sítio Solidão, município de Caraúbas,
Estado do Rio Grande do Norte, embora registrado em Severiano Melo, Estado do
Rio Grande do Norte, onde foi criado.
É filho de
José Alves Sobrinho e Rosa Maria de Carvalho. Casado com Rita de Oliveira
Carvalho, reside em Mossoró, Estado do Rio Grande do Norte. Tornou-se
repentista profissional a partir de 1983, sendo autor de diversos títulos de
cordel, a exemplo de “Armadilhas do Destino”, “Pela Vida do Planeta”, “A Quebra
de Silêncio”, “A Crueldade de Osama e A Vingança de Bush” e “Confusão no
Cemitério”.
No cordel
“Confusão no Cemitério” (Coleção Queima-bucha de Cordel – nº 10 – Março de 2002
– Mossoró - RN), cuja inovação na arte de capa, em xilogravura, se deve ao não
menos renomado poeta popular Antônio Francisco, efetivada pelo artista plástico
e poeta Laércio Eugênio, José Ribamar Alves expressa os pormenores do seu
IMAGINÁRIO fantástico ao contestar a ordem estabelecida através de confusões na
vida após a morte.
Um cemitério
do Rio de Janeiro, cidade onde os contrastes são mais acentuados, imperando a
violência urbana e a corrupção, as quais andam de mãos dadas em consonância com
o recrudescimento das diferenças interclasses, serve de cenário para a
narrativa.
As confusões
de um coveiro atrapalhado, conhecido por “biriteiro”, são narradas na terceira
pessoa do singular, as quais tiveram como veículo as confissões de um
personagem que o autor deu o nome de Fernando de Risadinha.
Invocando
contatos com o além, José Ribamar Alves traça o perfil da sociedade através da
continuidade das relações de poder observadas no mundo dos vivos. O coveiro
recebe visita de pessoa morta que vem lhe reclamar do serviço errado que o
deixou com as costas viradas no túmulo, de cujo gesto de vingança consistiu em
trocar as cruzes do cemitério, invertendo as identificações dos mortos das
quais pertenciam.
A cruz de um
marginal vai parar no túmulo de um Juiz Federal, enquanto um vigário e um
pastor, após as inversões, acabam brigando, suscitando que faleceram
desconhecendo o significado da palavra “amor”. Cartola desesperado com a confusão
da troca de cruzes demonstra que tem poder, mesmo após a morte, convocando a
repressão do aparelho do Estado, da mesma forma quando vivo, fazendo o maior
escarcéu na necrópole, invocando ainda os poderes de um pai de santo, também
falecido.
Como no mundo
dos vivos, apenas pobres e excluídos sofrem com a algazarra das almas penadas,
enquanto chefão de drogas, banqueiro de jogo, advogado e político não são
molestados.
O desejo de
revanche fica explícito quando a alma de um “cabra desassombrado” “Meteu um
braço de cruz/ Na nuca dum delegado/ Que ele caiu por cima/ Da caveira dum
soldado” (Confusão no Cemitério, estrofe XXII).
Isso serviu
para “despertar” os marginalizados da letargia em que se encontravam, atentando
contra a ordem estabelecida e afirmando, dessa forma, a contestação ao status
quo. Rebelam-se mundana, travesti e jogador, além de cego, maneta, perneta,
mudo, gari, escritor, jornalista, motorista, prefeito e vereador.
Na verdade,
desencadeia-se uma revolta em todas as classes, condicionada pela hegemonia que
desfrutam àqueles que detém o poder, levando o autor a indagar sobre a
repetição, entre os mortos, das mesmas situações de desigualdades terrenas,
quando o cordelista destaca que “Também sei que entre as classes/ Há muita
desigualdade/ De tudo elas são capazes/ Mas pra falar a verdade/ Eu não sabia
que os mortos/ São da mesma qualidade” (Confusão no Cemitério, estrofe XXIX).
A exclusão
social, infelizmente, ainda é uma mácula na sociedade brasileira e o cordel,
enquanto instrumento de afirmação das classes populares, cumpre o papel de
bradar contra as injustiças e em favor das aspirações do povo brasileiro.
Em “Confusão
no Cemitério” José Ribamar Alves sintetiza a cosmovisão popular e o seu
imaginário quanto ao desejo de buscar a superação das distorções sociais que
separam ricos e pobres num fosso indevassável da realidade criada pelas elites
que se arvoraram em donas do poder desde nossa formação sócio-econômica.
José Romero
Araújo Cardoso. Geógrafo. Professor Adjunto IV do Departamento de Geografia da
Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte - UERN.
BIBLIOGRAFIA
CONSULTADA
CARDOSO, Tânia
Maria de Sousa. Cordel, cangaço e contestação: Uma análise dos cordéis A
chegada de Lampião no Céu (Rodolfo Coelho) e A chegada de Lampião no inferno
(José Pacheco). Mossoró/RN: Fundação Vingt-un Rosado, 2004.
Enviado pelo escritor, professor e pesquisador do cangaço José Romero Araújo Cardoso.
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