Por: Rangel Alves da Costa(*)
FORRÓ
DO MILTINHO
Por mais
incrível que possa parecer, mas no sertão não é nada fácil encontrar o
autêntico forró pé-de-serra e o bicho preá. Este porque a derrubada da mataria
e a queimada do mato rasteiro determinaram seu desaparecimento. E aquele pelos
modismos musicais impostos em tempos de arrocha, axé, baianada e o tal do forró
elétrico.
As festas
oficiais patrocinadas pelas prefeituras, como as da padroeira e da emancipação
política, são todas elas com bandas e grupos musicais que em nada refletem o
verdadeiro espírito sertanejo. São festas apenas para os jovens e um
desrespeito total aos sertanejos de mais idade.
Desrespeito
não só aos mais velhos, como também à própria história, à cultura e às
tradições sertanejas. Ao não oferecer patrocínio para um forró autêntico, um
forrozeiro de renome, de modo que o sertanejo reencontre suas raízes e possa
dançar como fazia antigamente, o administrador atual está desrespeitando o
próprio sertão.
Como já
afirmei noutros textos, os jovens têm todo direito de brincar, de requebrar, de
se esbaldar com suas músicas insignificantes e sempre pautadas em modismos
extravagantes. Mas o sertanejo também deve ter garantido seu direito de
saborear suas raízes forrozeiras. No entanto, é impedido de reencontrar sua
musicalidade por culpa de quem só prestigia o gosto da juventude.
Poço Redondo,
município sergipano no alto sertão do estado, desde muito que sofre as
consequências dessa opção musical levada adiante pelos administradores. Lugar
famoso pelas festas de agosto, onde os salões se enchiam para ouvir e dançar
forró pé-de-serra ao som da sanfona de Zé Aleixo, Dudu, Zé Goiti, Agenor da
Barra, Didi, Raimundinho e tantos outros, de repente viu os salões se fecharem
e a sanfona, o zabumba, o triângulo e pandeiro silenciarem de vez.
Desde muito que
um sanfoneiro bom, renomado, não é contratado para abrilhantar uma festa,
sequer junina. Também não há mais forrós pelos salões, daqueles começando cedo
e varando a madrugada. Há sim, mas de iniciativa privada, e voltados para um
público cativo e apaixonado pela sua autêntica musicalidade.
E este público
é aquele mais antigo e que não abre mão de arrastar a chinela ou o sapato
encourado pela sala de reboco. É no arear a fivela, no esfregar bucho com
bucho, no chinelar pelo salão que a vida sertaneja encontra contentamento
perante as dificuldades da vida.
Foi nesse
contexto de desvalorização cultural, de antimusicalidade e de desprestígio das
raízes nordestinas pelos administradores, que algumas pessoas começaram a tomar
a iniciativa de não deixar a voz da sanfona calar de vez. Pessoas abnegadas e
também forrozeiras como Missião e Miltinho chamaram para si a responsabilidade
de manter acesa a tradição do forró pé-de-serra, contratando sanfoneiros e
oferecendo festanças matutas.
Mas foi
Miltinho quem mais procurou manter acessa essa chama. Ele, um sertanejo
humilde, ex-tratorista, de uma bondade sem igual, passou a transformar o grande
espaço do seu bar à beira da pista asfáltica, num verdadeiro salão forrozeiro.
Os seus forrós
ficaram tão famosos e com público tão assíduo que o salão de três portas ficava
completamente lotado, sem espaço para mais ninguém, ainda que nos
dias que rivalizava com as bandas famosas logo adiante, na Praça de Eventos.
Salão e bar,
forró e cantoria, arrasta-pé e nostalgia, tudo isso fazendo a alegria de
senhores e senhoras que nem se incomodavam com os suores, as bebedeiras, o
cheiro de cachaça, os tantos chamados para dar uma voltinha pelo salão. Também
gente armada, afeita a uma confusão, mas tudo regido por Miltinho, que do outro
lado do balcão logo dizia que não admitia bagunça no seu forró. E tudo ficava
paz.
E assim a
noite varava com a sanfona gemendo e os corpos suados querendo mais. E nessa
junção de forró, arrasta-pé e talagada, a noite avançava sem ninguém se dar
conta. Muitas vezes, já madrugada clareando e o salão ainda estremecendo com os
forrozeiros afoitos que nem bichos na mataria. E ao amanhecer, já sem o som da
sanfona, mas pessoas pelo balcão e pelos cantos.
Contudo,
infelizmente nosso Miltinho faleceu bem às vésperas desse São João. No dia 21,
quando talvez já estivesse com todo o forró programado, teve um ataque
fulminante e calou, como faz uma sanfona depois de tanto alegrar os sertanejos.
Como o instrumento nordestino em despedida, deu seu último acorde e partiu.
Assim que eu soube da triste notícia, assim me manifestei numa rede social:
“Hoje à tarde
tomei conhecimento da partida do nosso amigo Miltinho, aquele mesmo do Bar do
Miltinho, em Poço Redondo. Desde muito que o conheço e por quem guardava
profunda amizade e consideração. No seu jeito simples e amigueiro de ser,
acabou se transformando num baluarte ao preservar a tradição forrozeira em Poço
Redondo. Enquanto a juventude se requebrava com as bandas e grupos musicais na
Praça de Eventos, os mais velhos acorriam ao seu bar para dançar até o
amanhecer com o mais autêntico forró pé-de-serra. Quando não organizava a dança
matuta, alugava o ambiente para a mesma finalidade, mas sempre por ali, tomando
umas e recebendo os bons amigos. Coisa do destino que tivesse acontecido assim.
Às vezes do São João, época maior do forró, e aquele seu guardião nos deixa
inesperadamente. Que Deus o acolha no grande homem que sempre foi. Que Deus
zele e console toda família. A morte, Miltinho, é também um forró de despedida,
um canto de dor no coração de quem fica”.
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e cronista
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