Por Rangel Alves
da Costa*
Era uma vez...
(“Oh! Que saudades que tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida
que os anos trazem mais...”, citando Casimiro de Abreu). Toda história linda e
um dia lida assim começava. Era uma vez...
Era uma vez
uma família pobre, muito pobre, moradora numa região distante e sobrevivendo da
sorte da terra. E quando o sol insistia em alongar-se no dia e a estiagem
espantava o verde e a esperança, então tudo se transformava num só sofrimento.
E uma
realidade assim de tristeza e sofrimento logo se abateu pelas redondezas. Dia e
mais dia, mês e mais mês, entrando e saindo ano, e nada da chuvarada chegar.
Não havia mais plantação sobre a terra, eis que tudo esturricado e cinzento. O
pote quase sem água, a panela sempre vazia.
A família era
pequena, pois apenas o pai, a mãe e um menino. Ainda assim não havia mais nada
que servisse de alimento aos três. Os pais sofriam, mas principalmente pelo
temor de não ter mais o que dar ao menino quando sentisse fome.
Não havia mais
galinha no quintal nem qualquer criação no pasto. Faltava ovo e a carne
esbranquiçada da palma. Também não havia mais pedaço de pão nem resto de
qualquer coisa. A caça do mato, como o preá e a codorna, estava cada vez mais
difícil de ser encontrada. A seca havia espantado tudo.
Ainda não
tinha a consciência e a sabedoria de um adolescente, mas o menino já
compreendia a triste realidade. E por isso mesmo, ainda que com fome, tudo
fazia para não demonstrar sua vontade de comer qualquer coisa. Suportava a fome
em silêncio. Também percebia o sofrimento dos pais diante do fogo apagado e da
panela vazia.
Passava o
tempo conversando com um passarinho que mantinha numa gaiola. Aquele era o seu
único amigo e confidente. Entristecia por mantê-lo ali engaiolado, tinha
vontade de soltá-lo, de deixá-lo novamente em liberdade, mas dois pensamentos o
faziam recuar em abrir a porta.
O primeiro
dizia respeito à solidão que sentiria sem aquele amigo em tempos tão difíceis.
Muitas vezes chegava perto da gaiola para dizer que sentia fome, mas suportaria
até que encontrasse alguma coisa para enganar a barriga. E o segundo era a
certeza de que seu amiguinho iria parar dentro de alguma panela ou em cima das
brasas de um fogão. Ora, sem qualquer caça na região, logo seria misturado à
farinha seca e mastigado.
Mas um fato
inusitado deixou o menino ainda mais triste e preocupado. Mesmo não estando
entre eles, acabou ouvindo seu pai confessar algo estarrecedor à sua mãe. E
ouviu que diante da situação não havia outro jeito senão matar o passarinho,
assar na brasa e dividir aquele quase nada entre os três. Mas teria de dizer ao
menino que o seu amiguinho havia simplesmente fugido.
Tais palavras
acabaram provocando uma profunda aflição. Tudo, menos matar seu passarinho.
Seria o fim do mundo jogar no braseiro um toquinho magricela que nem gosto
daria na boca. Ademais, estava ali sem importunar ninguém, cantando de vez em
quando, alegrando o padecimento da família. Ademais, era seu passarinho, seu
amiguinho, e não deixaria de jeito nenhum que isso acontecesse.
Mas fazer o
que? Pensou, pensou e pensou. Mas não tinha muito tempo para pensar. Tinha de
encontrar uma solução imediata e antes da chegada da noite, pois quando
adormecesse corria o risco de acordar sem o seu fiel companheiro. E então, já
ao entardecer, resolveu abrir a porta da gaiola.
Mas não ali na
presença dos pais, pois poderiam se aproveitar da situação e alcançá-lo.
Aproveitou um instante de distração e desceu a gaiola. Depois se encaminhou
rapidamente para a mataria ao redor e começou a dar adeus ao amigo, numa
despedida comovente e dolorosa.
“Vá, voe para
bem longe e o mais alto que puder. Mesmo que ainda esteja fraco pra voar
apressado, tudo faça para se afastar daqui o quanto puder. Vai correr muito
perigo se continuar por aqui, pousando nos pés de pau adiante. Tem gente
caçando cobra pra comer e muito mais um passarinho bonito como você. E Deus me
livre de saber que meu amiguinho foi acertado por uma baleadeira ou espingarda
de chumbo. Vá que quando a situação melhorar juro que vou entrar nessa mataria
e lhe procurar. Agora vá amiguinho. Adeus!”.
As mãos
pequeninas se levantaram até o alto e se abriram para que o pássaro alcançasse
os espaços. Desacostumado à liberdade, ao voo, se esforçava para bater as asas
e alcançar qualquer galho. E assim de um galho a outro, até sumir, ao menos da
visão do menino. Mas o pássaro, entre folhagens secas, fixava o olhar no
amiguinho e chorava por dentro. E também por fora. Mas dizem que lágrimas de
passarinho são invisíveis.
Ao retornar
entristecido, cabisbaixo, silencioso, o menino encontrou seu pai do lado de
fora do casebre. E a primeira coisa que ele fez foi perguntar pelo passarinho.
O filho respondeu que havia fugido e que estava no mato tentando encontrá-lo
novamente, mas ele parecia ter voado para muito longe.
Pensativo, o
pai nada mais perguntou. Naquela noite o menino não conseguiu adormecer de
jeito nenhum. Silenciosamente chorando, não pensava noutra coisa senão no seu
passarinho. Tinha um pressentimento ruim, uma quase certeza que ele ainda
estava por perto e correndo muito perigo.
Logo cedinho o
menino correu na direção da mataria, nos arredores de onde tinha soltado o
amiguinho. Chamou, imitou seu canto, olhou de canto a outro, e nada de
avistá-lo. Retornou esperançoso de que ele tivesse conseguido voar para longe
dali. Mais tarde olhou se o fogão de lenha estava aceso e com alguma coisa por
cima, porém nada avistou.
Quando a noite
chegou, mesmo faminto, logo começou a cochilar e também sonhar. Sonhou que o
seu passarinho estava ali na sua janela. Assustado, abriu os olhos e olhou naquela
direção. Avistou apenas um vulto. Era ele, não tinha dúvida. E foi lentamente
se aproximando. E também foi a primeira vez que ouviu um pássaro falar:
“Adeus
amiguinho. Você me libertou para me proteger, pois não queria que eu fosse
morto para servir de comida. E nosso acordo foi para eu retornar um dia e
cantar novamente ao seu lado. Mas alguém me alcançou sem que eu pudesse evitar.
Por isso não existo mais, já morri. Quer dizer, me mataram como ilusão de matar
a fome. O passarinho que fui já não sou mais, apenas uma alma que se despede de
um verdadeiro amigo. Adeus amiguinho, mas ouça, ainda que não me aviste
mais...”.
E o vulto
sumiu no meio da noite. Mas o menino continuou ouvindo um canto triste de
pássaro. E ainda hoje, muitos anos depois, ainda ouve o amigo cantar no meio da
noite.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Se você gosta de ler histórias sobre "Cangaço" clique no link abaixo:
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário