Por Rangel Alves
da Costa*
Alguém já
disse que as estantes de livros são como casas de bons amigos que precisam
sempre ser sempre visitadas. Aparentemente apenas casas fechadas, tristes,
abandonadas, mas bastando uma batida na porta ou janela para que tudo se
transforme numa calosa acolhida.
Com razão,
pois os livros, depois de lidos ou não, são geralmente colocados ali e
esquecidos. O tempo passa, a poeira vai chegando mansamente, as traças procuram
brechas, as lombadas esmaecem e as páginas se retraem e amarelam como folhas
mortas. E quando mais os anos avançam mais o esquecimento vai transformando a
estante num local triste e solitário.
Não posso
dizer que sou um afetuoso amigo dos livros, pois os visito menos do que
deveria. E dentre tantos, apenas um ou outro recebe minha atenção para
releitura ou alguma pesquisa. Sou ingrato, confesso. Não vou mais me preocupar
apenas em afastar a poeira nem continuar visitando alguns em detrimento de
outros. E também não vou deixar que traças ameacem aqueles lares de
eternidade.
Não significa,
porém, que terei de reler tudo novamente. Não precisa que seja assim, pois a
visita pode ser rápida e mais proveitosa do que se possa imaginar. Singelos e
conscientes amigos como são, os livros certamente compreenderão que um breve
instante ao lado de cada é mais que suficiente para o fortalecimento dos laços
de amizade. Assim, de vez em quando bater à porta de cada um será como o alegre
retorno de quem andou muito distante.
Os livros não
são túmulos relegados ao esquecimento. Cada obra, cada exemplar, possui vida
própria, transpira e respira, exala vida em cada página, em cada personagem, em
cada contexto da trama ou da linha de escrita. Há um universo em cada livro, e
também um complexo de sentimentos muito mais delineados que na realidade
humana. Ora, os amores, os ódios, as paixões, as vinganças, os pecados, as
conquistas, as esperanças, tudo avistável nos livros.
Não apenas
pelo reconhecimento, mas também pela retribuição ao muito que já me
propiciaram, é que visitarei com mais frequência os livros de minha estante.
Igualmente como uma forma de evitar o que aconteceu com um jornalista amigo.
Este teve de suportar um acontecimento dos mais inusitados assim que encontrou
coragem para passar o espanador ao redor dos livros.
Estava
afastando o pó ali assentado quando lhe pareceu ouvir uma voz, e vinda de
dentro dos livros. Mas não pode ser, disse num misto de espanto e surpresa. Mas
em seguida aproximou o ouvido e não teve mais dúvidas. Então perguntou quem
estava falando e de onde falava, pois ali apenas livros arrumados numa estante.
E a resposta foi imediata: “Deixa de ser tolo. Não está vendo que estou aqui
dentro de um livro, mais precisamente na página 38. Agora anda, me tire daqui,
pois preciso respirar um pouco”.
Como não sabia
o título do livro, e como todos ali certamente tinham a página 38, então
rapidamente foi tirando um a um. E algo mais estranho ainda aconteceu, pois a
cada livro colocado aberto no sofá mais ouvia vozes e até gritos de
contentamento. “Até que enfim, até que a luz novamente se fez para nós”, disse
a voz de um daqueles tantos personagens agora libertados das masmorras do
esquecimento.
E de repente a
sala se transformou numa barulheira só. De um lado personagens de Graciliano
Ramos falando da estiagem medonha, da dura caminhada em busca de qualquer
esperança. Quase a mesma coisa saindo da boca das criaturas de Rachel de
Queiroz, todos reclamando da sede e da fome, do sol escaldante e do fim de
mundo com aquela seca de 15. Já os amadianos, tantos espalhados pelos
arredores, falavam em temor pela volta daqueles que partiram nos seus barcos
para o mar distante, diziam das tocaias encomendadas pelos coronéis cacaueiros,
lembravam-se das prostitutas nos bordéis de falsas francesas por todo lugar,
choravam a sina dos meninos abandonados, dos capitães de areia perdidos nas
desditas do cais. E também os batuques e as oferendas nos terreiros dos orixás.
E ali um alma
suplicando salvação na Divina Comédia, acolá o Conselheiro renascendo de Os
Sertões para bramir contra o Estado e chamar seu povo à luta. Mais adiante um
menino dizendo choroso que já havia uma semana que cortaram seu pé de laranja
lima, e pelos arredores um bravio Ulisses dizendo que vencerá todas as
tormentas para reencontrar sua fiel Penélope. Que grito medonho o de Sargento
Getúlio dizendo que não importava se a prisão havia sido revogada ou não, e sim
que tinha de levar, por honra de macho, aquele comunista safado ao seu destino.
Mas o barulho
foi ficando tão estarrecedor que uma drástica decisão teve de ser tomada. O
amigo fechou a Divina Comédia com tamanha força que gemidos terríveis ecoaram
por todo lugar. Então todos os personagens silenciaram assustados. Mas Capitu
retomou a voz e disse: “Você pode silenciar os livros, mas ninguém pode mudar
nossos destinos. Queira ou não, mas todos nós continuaremos com nossas vozes
para a eternidade”.
Poeta e
cronista
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