terça-feira, 20 de janeiro de 2015

CHÁ DE PINTO

Por Joab Aragão

Manoel da Ozana acordou, naquele domingo, chateado com a vida. Abriu a porta da frente e deu de cara com o Tubarão, deitado sobre as cinzas da fogueira que, costumeiramente, tapeava a escuridão das noites sem luz elétrica, o que, aliás, nunca teve. O cachorro fez-lhe aceno com o rabo, mas Manoel não correspondeu à continência canina. Entrou em casa, acendeu o fogão a lenha, fez café e tomou-o adoçado com rapadura preta da Serra Grande. Depois, saiu para o terreiro, novamente. Bocejou. Coçou a virilha. Acendeu um cigarro pé duro, assuntou o tempo, e resolveu pescar. Mas as traíras, também chateadas, não fizeram caso das iscas de caçote colocadas no anzol. Nada pescou. Afobado com a tarefa inútil, recolheu a vara, guardou o landuá e partiu para a rua, sob o sol das nove horas e os protestos da mulher. Chegado à bodega do Zé Piranha,  pediu meia garrafa de cachaça no crediário. Bebeu todo o conteúdo, regado com farinha d’água. A seguir “filosofou” por alguns momentos e esbravejou contra as autoridades do lugar, se é que existiam. E insistiu para que o bodegueiro Piranha opinasse sobre os pontos de vista exarados sob as emanações etílicas. Calado, Piranha não tinha razões para comprometimentos. Estava ali simplesmente para atender a freguesia. Descontente com a falta de opinião do bodegueiro, franziu a testa, cuspiu outra vez no pé do balcão e disse que só se sentia bem quando dizia verdades. Depois de outra cuspida, alardeou que naquele ano iria votar, ora se ia. Mas não trocaria o voto por qualquer tostão de fumo podre, não. Só votaria vendo o dinheiro vivo, na mão. Havia muito tubarão barrigudo à procura de voto no tempo da inleição... Por isso o voto dele tinha muito valô...

E continuou debulhando o rosário de contestações, com o ensaio de um discurso sem plateia. Insatisfeito com as polêmicas levantadas, e não acatadas, deixou a bodega e saiu para a rua. Na passagem do batente, pisou no rabo do Joli, cachorro do Zé, que, pacientemente, dormia à luz do sol das onze horas. Ganindo, o cão ameaçou morder-lhe a perna bamba. Ao som de um palavrão, soltou uma cusparada contra o cachorro. Ao invés de atingir o alvo, a saliva, em forma de baba, escorreu ao longo da barbicha rala, com respingos pelo umbigo protuberante.

Ao chegar à banca de caipira do Alonso, parou, olhou, e ficou peruando o andamento das apostas. De pé, com os solados dos chinelos voltados para cima e as correias invertidas para debaixo dos pés, sustentava o corpo em constante desequilíbrio. Nesse balanceio desengonçado, fazia caretas à medida que o “banqueiro” recolhia as moedas. Vendo que as apostas favoreciam mais o dono da banca, resolveu contestar os resultados. Não satisfeito com a interferência inoportuna, exigiu participar das rodadas, sem pagar. Iria mostrar para a torcida que o banqueiro estava furtando. Dois “perus” associaram-se à investida. Sob o calor da torcida, deliberou apanhar a latinha que cobria o dado e mijar dentro dela. Isso mesmo. Para completar a obra, despejou o conteúdo da urina sobre a banca, e perguntou se o Alonso tinha achado ruim.

Claro que a conduta quebrava a “ordem” estabelecida pelo “banqueiro” que, ferido nos brios, revidou o ultraje desferindo uma facada no peito do audacioso Manoel. Como era natural, o agressor fugiu para livrar-se do flagrante. A vítima procurou abrigo sob o arremedo de alpendre que servia de pousada aos jogadores. Sentado agora sobre uma pedra, rodeado de curiosos, e com um filete de sangue a jorrar sobre a camisa furada, questionou num tom patético:

-  Arre égua, macho, será que o Alonso furô o meu relojo?

Se o relógio sofrera alguma avaria, não se podia mensurar o suspeito estrago, naquele momento. Mas, de qualquer forma, tratava-se de uma facada e a área supostamente atingida seria o relógio, ou melhor, o coração. E se a suposição fosse verídica? Aí, a história seria bem diferente. O certo é que o Manoel perdia sangue, embora pouco, mas urgia uma tomada de providência. E esta veio em forma de um carrinho de mão, desses usados em construção civil. Jogado à caçamba, foi levado por antigo companheiro de copo à residência modesta. Ao atingir o limiar do terreiro, Ozana, a amásia, perguntou o que havia acontecido. A resposta vazou em tom lamuriento:

-  Minha fia, o Alonso faqueiro me facô...

- Isso é pra tu deixá de ser besta, abestado. Agora vou ter que deixá as minhas obrigação e fazê um remédio pra te curar!

Promessa feita, partiu para a ação. Mandou o condutor do carrinho de mão desembarcar o passageiro e acomodá-lo no chão do pequeno alpendre. Dirigiu-se rapidamente aos fundos da casa, com uma vara de marmeleiro na mão. Sem perda de tempo, acertou um golpe no pescoço pelado de um pinto, metido a frangote, que ciscava a lama, sob o jirau depositário das panelas de barro, expostas ao sol. Abatido pela bordoada, o pinto caiu esperneando. Conduzido para a boca do pilão, foi pisado com penas, tripas, lama e o que mais conviesse, Num instante, o frangote ficou transformado numa massa informe e mal cheirosa. Posta para ferver, na caçarola, a massa, agora transformada numa espécie de mingau foi deglutida, pela vítima, antes de atingir a fervura ideal.

Bebida a meizinha galinácea, arrotou, lambeu os beiços, pediu bis, e agradeceu o providencial remédio. Daí a pouco dormia roncando. Não se sabe se pelo fato da superficialidade da furada ou se pela eficácia do chá de pinto, indicado para cicatrização de facada, de acordo com a medicina popular. O certo é que dormia tranquilo, roncando. Não morreria por causa daquela furadinha besta, pois o “relógio” continuava funcionando perfeitamente, livre de quaisquer sinais de arritmia.

Enviado pelo escritor, professor e pesquisador do cangaço José Romero Araújo Cardoso

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