Por Joab Aragão
Manoel da Ozana
acordou, naquele domingo, chateado com a vida. Abriu a porta da frente e deu de
cara com o Tubarão, deitado sobre as cinzas da fogueira que, costumeiramente, tapeava
a escuridão das noites sem luz elétrica, o que, aliás, nunca teve. O cachorro fez-lhe
aceno com o rabo, mas Manoel não correspondeu à continência canina. Entrou em casa,
acendeu o fogão a lenha, fez café e tomou-o adoçado com rapadura preta da Serra
Grande. Depois, saiu para o terreiro, novamente. Bocejou. Coçou a virilha. Acendeu
um cigarro pé duro, assuntou o tempo, e resolveu pescar. Mas as traíras, também
chateadas, não fizeram caso das iscas de caçote colocadas no anzol. Nada pescou.
Afobado com a tarefa inútil, recolheu a vara, guardou o landuá e partiu para a rua,
sob o sol das nove horas e os protestos da mulher. Chegado à bodega do Zé Piranha,
pediu meia garrafa de cachaça no crediário. Bebeu todo o conteúdo, regado com farinha
d’água. A seguir “filosofou” por alguns momentos e esbravejou contra as autoridades
do lugar, se é que existiam. E insistiu para que o bodegueiro Piranha opinasse sobre
os pontos de vista exarados sob as emanações etílicas. Calado, Piranha não tinha
razões para comprometimentos. Estava ali simplesmente para atender a freguesia.
Descontente com a falta de opinião do bodegueiro, franziu a testa, cuspiu outra
vez no pé do balcão e disse que só se sentia bem quando dizia verdades. Depois de
outra cuspida, alardeou que naquele ano iria votar, ora se ia. Mas não trocaria
o voto por qualquer tostão de fumo podre, não. Só votaria vendo o dinheiro vivo,
na mão. Havia muito tubarão barrigudo à procura de voto no tempo da inleição...
Por isso o voto dele tinha muito valô...
E continuou debulhando
o rosário de contestações, com o ensaio de um discurso sem plateia. Insatisfeito
com as polêmicas levantadas, e não acatadas, deixou a bodega e saiu para a rua.
Na passagem do batente, pisou no rabo do Joli, cachorro do Zé, que, pacientemente,
dormia à luz do sol das onze horas. Ganindo, o cão ameaçou morder-lhe a perna bamba.
Ao som de um palavrão, soltou uma cusparada contra o cachorro. Ao invés de atingir
o alvo, a saliva, em forma de baba, escorreu ao longo da barbicha rala, com respingos
pelo umbigo protuberante.
Ao chegar à banca
de caipira do Alonso, parou, olhou, e ficou peruando o andamento das apostas. De
pé, com os solados dos chinelos voltados para cima e as correias invertidas para
debaixo dos pés, sustentava o corpo em constante desequilíbrio. Nesse balanceio
desengonçado, fazia caretas à medida que o “banqueiro” recolhia as moedas. Vendo
que as apostas favoreciam mais o dono da banca, resolveu contestar os resultados.
Não satisfeito com a interferência inoportuna, exigiu participar das rodadas, sem
pagar. Iria mostrar para a torcida que o banqueiro estava furtando. Dois “perus”
associaram-se à investida. Sob o calor da
torcida, deliberou apanhar a latinha que cobria o dado e mijar dentro dela. Isso
mesmo. Para completar a obra, despejou o conteúdo da urina sobre a banca, e perguntou
se o Alonso tinha achado ruim.
Claro que a conduta
quebrava a “ordem” estabelecida pelo “banqueiro” que, ferido nos brios, revidou
o ultraje desferindo uma facada no peito do audacioso Manoel. Como era natural,
o agressor fugiu para livrar-se do flagrante. A vítima procurou abrigo sob o arremedo
de alpendre que servia de pousada aos jogadores. Sentado agora sobre uma pedra,
rodeado de curiosos, e com um filete de sangue a jorrar sobre a camisa furada, questionou
num tom patético:
- Arre
égua, macho, será que o Alonso furô o meu relojo?
Se o relógio sofrera
alguma avaria, não se podia mensurar o suspeito estrago, naquele momento. Mas, de
qualquer forma, tratava-se de uma facada e a área supostamente atingida seria o
relógio, ou melhor, o coração. E se a suposição fosse verídica? Aí, a história seria
bem diferente. O certo é que o Manoel perdia sangue, embora pouco, mas urgia uma
tomada de providência. E esta veio em forma de um carrinho de mão, desses usados
em construção civil. Jogado à caçamba, foi levado por antigo companheiro de copo
à residência modesta. Ao atingir o limiar do terreiro, Ozana, a amásia, perguntou
o que havia acontecido. A resposta vazou em tom lamuriento:
- Minha fia,
o Alonso faqueiro me facô...
- Isso é pra tu
deixá de ser besta, abestado. Agora vou ter que deixá as minhas obrigação e fazê
um remédio pra te curar!
Promessa feita,
partiu para a ação. Mandou o condutor do carrinho de mão desembarcar o passageiro
e acomodá-lo no chão do pequeno alpendre. Dirigiu-se rapidamente aos fundos da casa,
com uma vara de marmeleiro na mão. Sem perda de tempo, acertou um golpe no
pescoço pelado de um pinto, metido a frangote, que ciscava a lama, sob o jirau depositário
das panelas de barro, expostas ao sol. Abatido pela bordoada, o pinto caiu esperneando.
Conduzido para a boca do pilão, foi pisado com penas, tripas, lama e o que mais
conviesse, Num instante, o frangote ficou transformado numa massa informe e mal
cheirosa. Posta para ferver, na caçarola, a massa, agora transformada numa espécie
de mingau foi deglutida, pela vítima, antes de atingir a fervura ideal.
Bebida a meizinha
galinácea, arrotou, lambeu os beiços, pediu bis, e agradeceu o providencial remédio.
Daí a pouco dormia roncando. Não se sabe se pelo fato da superficialidade da furada
ou se pela eficácia do chá de pinto, indicado para cicatrização de facada, de acordo
com a medicina popular. O certo é que dormia tranquilo, roncando. Não morreria por
causa daquela furadinha besta, pois o “relógio” continuava funcionando perfeitamente,
livre de quaisquer sinais de arritmia.
Enviado pelo escritor, professor e pesquisador do cangaço José Romero Araújo Cardoso
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