domingo, 30 de junho de 2013

SOBRE NOITES E MADRUGADAS (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

SOBRE NOITES E MADRUGADAS

Uma linha sutil separa a noite da madrugada. Mais precisamente o ponteiro do relógio ao marcar zero hora. Do por do sol à meia-noite será apenas noite; da meia-noite até surgir a primeira alva da manhã será madrugada.

Contudo, não é errôneo afirmar que a madrugada está dentro da noite ou faz parte desta. Muitos chegam a afirmar ser a noite o período compreendido entre o cair das sombras da noite até o amanhecer. Ou o tempo em que a claridade do sol está ausente no horizonte.

Desse modo, a madrugada seria a noite avançada, lá pelas tantas horas, geralmente quando as pessoas já estão adormecidas. As horas vão passando e na escuridão o que é noite vai se preparando para o amanhecer.

As noites e as madrugadas dependem muito do lugar onde ocorram. No sertão, por exemplo, principalmente nas moradias distantes dos centros urbanos, a noite sempre começa mais cedo e a madrugada desperta antes mesmo de o galo cantar.


Em muitos lugares, onde os casebres estão envoltos no silêncio e na solidão, basta o sol começar a se esconder que a família já toma seu café para, dali a instantes, fechar a porta para o recolhimento noturno. No cansaço das lides, são poucos os que se demoram mais apreciando a beleza e a imensidão do luar.

Quando a noite cai totalmente já estão recolhidos, proseando pelos cantos ou ouvindo uma canção dolente no radinho de pilha. Adormecem com os barulhos próprios da noite, com os encantos e as magias do mundo lá fora, com a reinação de alguns bichos noturnos e o zunido incessante da ventania.

O casal desperta ainda na madrugada. Os amores velados quase se misturam com a hora de acordar. O galo nem cantou ainda e já é hora de levantar, da primeira prece, de abrir a porta e lançar o olhar ao mundo lá fora. Ainda é madrugada escurecida, mas logo uma luz amarelada começará a despontar lá na barra.

Quando o galo canta o café já está por cima do fogão de lenha e o pedaço de toucinho chamuscando para ser juntado à farofa. Parte da comida vai pro alforje, como alimento sertanejo para mais um dia de trabalho duro e distante. Um gole de café, uma olhada na filharada ainda adormecida, e a estrada. Ainda é madrugada, mas já é dia na vida do campesino.

Na cidade tudo é diferente. Em muitos lugares, dia, noite e madrugada se juntam num só percurso. Tem gente que trabalha noite adentro, tem gente que vive na noite e da noite, tem gente que encontra a madrugada, e também a manhã, na mesa de bar, nos cabarés, nas esquinas da vida.

Para muitos, a noite chega como encanto, como impulso e devotamento, para depois, com o correr das horas, ir se transformando em pesadelo, angústia, aflição e tristeza. Quando a madrugada chega e o corpo cansado de sexo transmuda o fingimento sentando à mesa e sorvendo a bebida, não demorará muito para que a realidade recaia num laivo de dor e sofrimento.

E o alvorecer encontra os últimos noctívagos, os bêbados e as prostitutas, semicerrando os olhos com medo da luz. Como é cruel a manhã para quem faz da noite o fingimento e a negação da própria existência. Talvez a bebida os faça apagar de vez e reencontrar o negrume iluminado de ilusões.


Mas a noite é também de outros fingimentos, outras cortinas para o pior que virá. Depois da escuridão a doença retoma seu lastro, reaparece com sua feição mais sinistra. O que é febril se torna fogueira, o que é uma dor se transforma em flechadas. E os gritos irrompem na escuridão, as janelas se abrem, a tristeza adentra. E a madrugada já é tudo desvão.

Quem dera se a noite trouxesse apenas os mistérios e os encantos da escuridão. Quem dera se a madrugada revelasse apenas os segredos adulterinos, as entregas amorosas, os cochichos dos apaixonados corações. E dos amores tantos, das entregas e procuras tantas, surgissem as estrelas próprias de cada prazer.

Mas nunca é assim. As noites continuarão sendo indecifráveis, como desconhecidas são as madrugadas. E quem cruzar seus caminhos certamente encontrará muito mais que uma lua na rua nua.

(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.


Poeta e cronista
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