Por: Rangel Alves da Costa(*)
CANJICA E OUTROS PECADOS
Há quase dois
meses que venho tentando segurar um regime. Tinha de ser assim. Aprecio roupas
folgadas, confortáveis, e as que mais gosto estavam ficando desconfortáveis.
Agora sei que a pessoa não perde em dois meses o que levou dois dias para
engordar. É um verdadeiro sacrifício essa coisa de lutar contra as delícias da
cozinha.
Ao chegar o
mês de junho entristeci de vez. Nesse período de festas juninas as comidas
típicas parecem desafiar todos os esforços para perder peso. E logo aqui no
Nordeste, onde as comidas de milho e coco imperam em cada canto que a pessoa
chegue. São tentações cheirosas, saborosas, coloridas, com aquele toque final
bem caipira. Tudo de dar água na boca.
Ou a pessoa se
tranca para nem sentir o cheiro junino se espalhando pelo ar ou começa a deixar
aflorar seus instintos de gulodice. Não é tarefa fácil dizer não ao apetite, à
vontade de sair experimentando ao se deparar com pamonha, canjica, milho assado
e cozido, queijo saído da brasa, arroz doce, mungunzá, pé-de-moleque, bolo de todo
tipo, uma infinidade de gostosuras.
Tenho sofrido
muito por causa disso. Faço o máximo possível para fugir das tentações da gula
junina, mas de vez em quando me sinto derrotado pelas minhas próprias mãos, meu
olhar, minha boca. Juro que é só um pouquinho, só um pedacinho, e lá vou eu
cortando uma fatia de bolo de milho, tomando um pouco de mungunzá, beirando
a canjica amarelinha espalhada no prato. O problema maior é a soma
de cada pouquinho, cada pedacinho. Deus meu!...
E hoje,
quinta-feira, acabei fazendo uma besteira maior ainda. Eis que ganhei umas
espigas de milho vindas lá do meu sertão de Nossa Senhora da Conceição do Poço
Redondo, e fui deixando pelos cantos com a intenção de não fazer nenhum uso. E
tudo para evitar comida. Contudo, enquanto esquentava água para um café olhei
num canto e avistei as tais espigas esperando destinação.
Ainda na
palha, com cabelos pendendo pelo corpo verdoso, aguçavam os sentidos. E então
tomei uma decisão impensada. Naquele mesmo instante resolvi preparar uma
canjica. Não um pouquinho, coisa de dois ou três pratos, mas um caldeirão
grande de canjica. Os três santos juninos certamente não me protegeram naquele
momento, vez que rapidamente me lancei às espigas e em pouco tempo todas já
estavam completamente desnudas e prontas para o passo seguinte.
Daí em diante
foi uma trabalheira danada. Como não tenho ralador, peguei uma faca de mesa e
fui debulhando o milho, caroço a caroço. Assim fiz numas dez espigas, creio que
até mais. Depois passei o milho verde no liquidificador, ajuntando um pouco de
água para cada porção. Após isso, era tudo levado ao coador e o líquido apurado
do milho colocado na panela. Com o leite do milho juntado, acrescentei leite de
coco também preparado no liquidificador, leite de gado, açúcar e sal. Um
tiquinho de manteiga também.
Com todos os
ingredientes, então teve início a parte mais demorada. Como se sabe, para que a
canjica não fique com bolas nem com partes com caldo mais grosso que em outros,
será preciso mexer continuamente, sem parar e com colher de pau. Desde que o
fogo é aceso até o mingau amarelado chegar ao ponto, após exalar todo o aroma
do milho e do coco e começar a borbulhar, a pessoa tem de estar ali mexendo a
colher de pau. E coube a mim toda essa trabalheira. Quase uma hora assim.
Enquanto mexia
a canjica ia pensando em quanto o ser humano é frágil diante de uma simples
receita de comida. Por mais que prometa a si mesmo fugir daquela tentação e
tudo faça para não cair no pecado da gulodice, de repente se transforma no
próprio algoz. E depois da canjica pronta, derramada no prato e com canela
espalhada por cima, exalando a junção do milho e do coco, só dá mesmo vontade
de chorar. E por óbvias razões. Mas prometo não fazer mais isso. Nunca mais.
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e cronista
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