Por Rangel Alves
da Costa*
Numa mata
nativa não há solidão. O mato fechado, virgem, ainda sem a presença humana, é
dos bichos, das plantas, dos encantados, dos seres que encontram moradia por
todo lugar. Tudo canta, tudo farfalha, zune, arrelia. E assim permanecerá até
que chegue o primeiro desbravador abrindo picada, formando vereda, entrando
pelas suas entranhas e rumando nas suas lonjuras. Então tudo começa a se
modificar, a entristecer, a perder o jeito de ser apenas natureza.
Igualmente uma
nação nativa inteira que é dizimada com a chegada do homem branco e suas
doenças, fincando o pé de conquistador e de cobiça em terras secularmente
imunes aos malefícios desconhecidos, bem assim o choque sentido pela natureza
selvagem ante o novo que chega para se sobrepor a tudo. A luta entre presa e
predador para sobrevivência dentro do reino animal dá lugar a um enfrentamento
ainda mais feroz. E sempre desigual. O bicho agora passa a fugir é da mão do
homem com sua arma ou seu facão de derrubar mundo inteiro.
Aliás, nada
mais cruel e devastador que o uso e serventia que o homem dá à sua mão. E onde
a mão do homem repousa, se lança ou se estende, logo ficarão as marcas da
destruição. Poderia muito bem edificar ou conservar, mas sempre prefere
destruir. E quando chega com objetivos de transformação da paisagem secular
para assentar sua sobrevivência ou por mera exploração, então quase nada mais
restará ao que é da terra como o próprio chão. A extinção dos animais e o
desmatamento da mata nativa já começam aí, de modo vagaroso como o próprio
tempo.
Mesmo que a
natureza possua o dom de refazer-se por si mesma, impossível lutar contra a
voracidade humana. Os animais e a vegetação da mata nativa procriam e renascem
num ciclo próprio. Nunca precisou nem precisará do homem para existir em
abundância. Mas tudo muda de contorno quando o forasteiro começa a pensar que
aquele mundo é somente seu. Não só as plantas ressentem a sangria na veia como
os bichos se espantam pelas ameaças. E na mente do homem a falsa concepção de
que nenhuma consequência terá se destruir um pouquinho em meio a tanto. Um erro
que pode vitimar de morte todo um habitat natural.
Assim
aconteceu no sertão sergipano e noutros sertões nordestinos. Antes que as águas
do Velho Chico trouxessem no seu largo leito de então os primeiros
desbravadores, colonizadores que se transmudavam das paragens litorâneas rumos
às terras inóspitas, toda aquela região parecia intocada. Terras a perder de
vista, com poucos nativos fixados em locais distintos, uma vastidão natural com
dono apenas nos simbólicos papéis das capitanias, sesmarias e concessões. E um
lugar sem posse não pode ter outro proprietário senão aquele que o habita desde
os primeiros tempos de tudo: os seres da natureza.
Desnecessário
caracterizar o bioma sertanejo, vez que tão conhecido na mente de cada um,
ainda que o avistado hoje não passe de feição insignificante se comparada aos
tempos idos. Com efeito, de canto a outro havia uma natureza pujante, viva,
habitada por onças, tatus, veados, tamanduás, teiús. E também por catingueiras,
angicos, aroeiras, bonomes, cedros, quipás, juazeiros, craibeiras, umbuzeiros.
E lar natural do mandacaru, do xiquexique, do cansanção e da urtiga, da
cabeça-de-frade e do facheiro, dentre outras cactáceas. Um emaranhado de cipós,
velames, macambiras, tufos, espinhos cortantes e flores surgidas na aridez.
Da beira do
rio em diante existia uma verdadeira selva, fechada, quase impenetrável. E no
meio da mata os habitantes dos galhos, das locas, dos arbustos, dos escondidos
da macambira, das grutas nas pedras grandes, numa variedade de bichos em luta
renhida na disputa pelos espaços e fazendo a natureza fervilhar. Mesmo em
épocas de grandes estiagens, quando tudo acinzentava e a maioria das plantas se
curvava na magreza da morte, ainda assim os animais encontravam abrigo nos
arredores sombreados das grandes árvores sertanejas, aquelas que enfraquecem os
galhos mas não se dobram pela secura escaldante.
Tempos,
tempos, como diria a ventania que sopra sem encontrar folhagem para levar. Nada
mais como antes, nem por ideia de aproximação. O que era grandioso se tornou
empobrecido, o que era pujante perdeu sua altivez, o que era de exuberância
singular tem de se conformar com um pé de pau ou outro que continua fincado nas
terras de sempre. De sempre, mas agora tão devastadas pelo homem que abre na
carne e sangra na raiz a dura etimologia do nome sertão: desertão.
Desertão,
significando terras áridas, inóspitas, distantes. E o mais doloroso que agora
uma terra tão devastada pelo homem que quase nada resta de planta, bicho,
arvoredo. Clarões surgiram onde havia mata, silêncios profundos tomaram o lugar
dos cantos passarinheiros e do rebuliço dos animais. Não que os bichos do
sertão tenham sido extintos, pois expulsos pelo homem. Não que a mata tenha
sumido numa seca maior, mas derrubada pela mão do homem. E o que se tem hoje é
a solidão do mandacaru, da catingueira, do quipá.
Poeta e
cronista
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