Por: Rangel Alves da Costa(*)
LEMBRANÇA
DE DOER LÁGRIMA
Da minha
infância em Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo, nestas terras tão
distantes e ressequidas do sertão sergipano, trago comigo o sublime e o
espanto, o belo e o apavorante, a alegria e a tristeza.
Mas trago
principalmente uma lembrança de dor que jamais se afasta de mim. Como diz o
poema, meninos eu vi! Ainda que naqueles momentos não atinasse bem acerca de
contextos e significações, hoje sei o quanto doloroso já presenciei.
Um sol. Um sol
escaldante. Um céu azulado, nenhuma nuvem de chuva. E o tempo passando, a seca
avançando, a planta morrendo, o bicho mugindo, berrando. A fome e a sede. O
quadrante da dor. O espelho do sofrimento.
Eu era rico.
Tinha prato cheio e água no copo, tinha sapato e roupa vistosa. E quem tivesse
comida à mesa e o de bem vestir era rico, principalmente diante da miséria que
fazia moradia ao redor, mais adiante e por todo lugar.
Meu sertão
nunca abrigou pessoas de mãos estendidas pelas portas pedindo esmola. Ainda que
a situação familiar estivesse insustentável, os pequeninos chorassem noite e
dia de barriga vazia, jamais um pai ou mãe de família se fez de pedinte na
porta do conterrâneo. Quando muito, sofrendo e remoendo por dentro, batia à
porta da autoridade municipal, o prefeito.
E eu era filho
de prefeito. Meninote, ainda sem entender profundamente a situação em que a
maioria do povo se encontrava, apenas olhava na face de um que chegava para
imaginar quanta necessidade estava passando, quanto sofrimento estava
padecendo, quanto precisava de qualquer coisa para sobreviver.
Precisava de
tudo. Era carente de tudo, empobrecido demais, e muito mais ainda diante da
seca que se alastrava, da falta de emprego, da comida esturricada no chão, do
nada vingado, da panela virada e do pote vazio. Sem caça no mato, sem sopa de
osso, sem pão mofado e envelhecido, só restava a dor, o sofrimento, a miséria
plena, absoluta.
Precisava
realmente de tudo. A mulher precisava de remédio de dor, o filho precisava de
remédio para matar as verminoses, e ele próprio sofrendo de reumatismo que não
aguentava mais. E na casa faltava tudo. Na casa não tinha nada. Um telhado
caindo, uma porta encostada, e lá dentro...
Precisava
muito de feijão, de arroz, de jabá, de farinha de milho, de café, de açúcar, de
sal, de farinha de mandioca, de uma fatia de mortadela. Mas a humildade tornava
a precisão em esquecimento e jamais abria a boca para pedir além do
indispensável. Dizia apenas que qualquer coisa já era de demasiada serventia. E
qualquer coisa mesmo...
Qualquer coisa
porque o que lhe fosse oferecido era aceito com indescritível satisfação. Os
olhos tristonhos piscavam felizes, o semblante queimado de sol reluzia, a boca
se abria para o sorriso sem jeito, a palavra saía silenciosa. Era comoção
demais para poder falar qualquer coisa.
Apenas um
quilo disso e daquilo, um pedaço disso e daquilo. Coisa que não dava para
muitos dias, principalmente se a família fosse grande, como sempre acontecia
naquelas taperas espalhadas rincões adentro. Daí em diante o reencontro com a
barriga vazia, os sofrimento da fome e da sede, a terrível agonia. E nada de
chuva...
Nada de novo
debaixo do sol, como cita o Eclesiastes. Passa o dia, vem mais um dia, e o
sertanejo a mirar o horizonte para ver se enxergava alguma nuvem boa se
aproximando. Mas nada ainda. Tudo apenas céu, sol, calor de queimar por dentro.
Sem ventania, sem passarinho fazendo ninho no chão, sem jaçanã anunciando
trovoada, nada de bom a esperar. Nada de novo debaixo do sol...
Até que depois
de tanto sofrimento, de morte de gente e bicho, a nuvem prenhe surgia ao longe
e começava a mijar por cima de tudo. Uma festa, e que festa. A chuva chegou, a
chuva chegou. E mais tarde a semente jogada, a terra gestando, o pão sertanejo.
Água de beber, água de viver. E não apenas lágrimas.
E depois
batiam à porta de casa com uma bacia de feijão de corda, uma mão de milho
verde, uma melancia, uma penca de coisa da terra. Era o agradecimento por
aquele auxílio no momento da necessidade. Até que a porta fosse novamente
procurada. E inevitavelmente seria, pois sempre acontece assim.
Tudo isso já
vi, já senti, já sofri diante do sofrimento do conterrâneo. Ainda que dor,
ainda que tristeza, jamais quero esquecer o que presenciei. Por isso que ainda
lembro o olho fundo, profundo, o corpo magro, a feição sofrida. E a alegria no
momento do pão. E quanta lição!
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
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