quarta-feira, 24 de abril de 2013

VACA PINTADA CANTANDO DEBAIXO DA LUA (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa(*)

VACA PINTADA CANTANDO DEBAIXO DA LUA
  
Isso mesmo, e acredite se quiser, mas a vaca pintada cantava debaixo da lua. E era uma vaca mesmo, a fêmea do touro, o mamífero ruminante, o animal quadrúpede. A bovina pintadinha de tufos marrons em meio ao pelo amarelado cantarolava, pois, debaixo do facho luminoso da noite. Porém, era um canto triste, muito triste.

Não se sabe bem porque ela cantava ao invés de ruminar, berrar ou mugir. Tristeza de vaca se expressa num doloroso mugido, como um grito longo e surdo, tudo mundo conhece assim. Mas ali estava uma situação diferente, totalmente inusitada, coisa que somente o velho sertanejo podia conhecer seus motivos.

Ademais, é tão próprio da vaca em noite lua cheia procurar um lugar mais alto na fazenda, um descampado mais altaneiro e lá em cima virar o focinho pra cima e, feito lobo, soltar sua melancolia sonora. Mas aquela vaca dava outras entonações ao seu canto. Igual ao berrante que ecoa segundo o sentimento do aboiador, o canto da vaca dizia muito do que sentia por dentro.


A bem dizer, não sei se canto ou lamento, uma canção dolente de entristecer toda a natureza ao redor. E num instante tão propício aos cantos tristes, saudosos, pois silencioso e de vento murmurante. Contudo, alguns aspectos podem servir como guia para compreender o que realmente acontecia naquela noite entristecida, ainda que de lua cheia e bonita se derramando dourada sobre o sertão.

Como afirmado, a vaca era pintada, com tufos marrons sobre o pelo amarelado. Mas por cima de um corpo magro e ossudo, de olhos profundos e fantasmagóricos, numa fraqueza de se avistar ao longe. Com efeito, aquela vaca era sobrevivente da terrível seca que se abateu ferozmente sobre a vastidão sertaneja. Não só sobrevivente, mas também a única que havia conseguido levantar depois que a chuva grossa caiu.

Todo o rebanho da pequena fazenda estava numa magrez que só. Bois, vacas, bezerros e garrotes que em outras estações chegavam a ter o pelo liso e viçoso de tanta carne juntada, de repente começou a definhar por falta de comida e água. As plantas esturricaram, os brotos acabaram de vez, e quando a palma sumiu da terra então foi um deus nos acuda. Os berros famintos eram ouvidos ao longe, para tristeza e lágrimas do velho sertanejo.

Sem palma, sem capim, sem toco de pau pra lamber, e também sem mais conseguir sugar a lama do fundo dos poços, tanques e barreiros, daí em diante tudo se tornou num indescritível tormento. Todo o rebanho foi secando, definhando, afundando o olhar choroso, aumentando a baba no focinho, tendo a moscaria crescente como testemunho da aflição. E lá no alto os urubus e os gaviões já voejavam prenunciando o pior. Sem falar no carcará. Êta bicho danado!

Primeiro uma vaca mestiça de pele e osso deitou debaixo de um umbuzeiro para não mais levantar. A fraqueza era tanta que não conseguiu forças para ficar em pé. E foi quando o carcará chegou para furar-lhe os olhos. E o resto ficou por conta dos gaviões e urubus. E assim, uma a uma foi tombando e ficando derreada ali mesmo, entregue à sorte do tempo cruel.
Só restavam três vacas ainda em pé, mas mesmo assim num andajar vagaroso e tristonho que mais parecia prestes a dar o passo da despedida. A situação, pois, já estava insustentável para os demasiadamente frágeis animais quando a nuvem negra, prenhe de água, começou a passear por cima e, após o relampejar e o roncar do trovão, começou a derramar tudo de vez.

Os pingos grossos batendo na pele ossuda eram pontadas, pedras arremessadas diante de folha seca. E quando o chão se fez lama, as três vaquinhas, tentando alcançar o umbuzeiro, derraparam no visgo e se esparramaram no chão. Após a chuvarada, duas delas ficaram ali mesmo, ainda fracas demais, sem forças para se erguer. E bastou o sol despontar para o carcará aparecer veloz e faminto. Furou os quatro olhos num só instante e abriu a porteira para a chegada dos carnicentos. As vaquinhas soltavam mugidos desesperados, porém já era tarde demais. De bicada em bicada as vidas foram se esvaindo.


E a outra vaca? Sim, a outra vaca. A outra vaquinha conseguiu levantar ainda com a chuva caindo. E mais adiante, debaixo do umbuzeiro, assistiu estarrecida suas irmãs serem devoradas ainda vivas. Chorou por dentro e lacrimejou por fora, mugiu de dor, soltou longos berros de tristeza e aflição.

E depois cantou. Na primeira lua cheia que despontou, seguiu rumo às alturas do descampado e cantou debaixo da lua. Mas será que era canto mesmo? Estava sozinha, continuava com as imagens vivas daquela tragédia. Mas ainda conseguiu forças para cantar. Mas será que cantava mesmo?

(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.

Poeta e cronista
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