Por: Rangel Alves da Costa(*)
VACA
PINTADA CANTANDO DEBAIXO DA LUA
Isso mesmo, e
acredite se quiser, mas a vaca pintada cantava debaixo da lua. E era uma vaca
mesmo, a fêmea do touro, o mamífero ruminante, o animal quadrúpede. A bovina
pintadinha de tufos marrons em meio ao pelo amarelado cantarolava, pois,
debaixo do facho luminoso da noite. Porém, era um canto triste, muito triste.
Não se sabe
bem porque ela cantava ao invés de ruminar, berrar ou mugir. Tristeza de vaca
se expressa num doloroso mugido, como um grito longo e surdo, tudo mundo
conhece assim. Mas ali estava uma situação diferente, totalmente inusitada,
coisa que somente o velho sertanejo podia conhecer seus motivos.
Ademais, é tão
próprio da vaca em noite lua cheia procurar um lugar mais alto na fazenda, um
descampado mais altaneiro e lá em cima virar o focinho pra cima e, feito lobo,
soltar sua melancolia sonora. Mas aquela vaca dava outras entonações ao seu
canto. Igual ao berrante que ecoa segundo o sentimento do aboiador, o canto da
vaca dizia muito do que sentia por dentro.
A bem dizer,
não sei se canto ou lamento, uma canção dolente de entristecer toda a natureza
ao redor. E num instante tão propício aos cantos tristes, saudosos, pois
silencioso e de vento murmurante. Contudo, alguns aspectos podem servir como
guia para compreender o que realmente acontecia naquela noite entristecida,
ainda que de lua cheia e bonita se derramando dourada sobre o sertão.
Como afirmado,
a vaca era pintada, com tufos marrons sobre o pelo amarelado. Mas por cima de
um corpo magro e ossudo, de olhos profundos e fantasmagóricos, numa fraqueza de
se avistar ao longe. Com efeito, aquela vaca era sobrevivente da terrível seca
que se abateu ferozmente sobre a vastidão sertaneja. Não só sobrevivente, mas
também a única que havia conseguido levantar depois que a chuva grossa caiu.
Todo o rebanho
da pequena fazenda estava numa magrez que só. Bois, vacas, bezerros e garrotes
que em outras estações chegavam a ter o pelo liso e viçoso de tanta carne
juntada, de repente começou a definhar por falta de comida e água. As plantas
esturricaram, os brotos acabaram de vez, e quando a palma sumiu da terra então
foi um deus nos acuda. Os berros famintos eram ouvidos ao longe, para tristeza
e lágrimas do velho sertanejo.
Sem palma, sem
capim, sem toco de pau pra lamber, e também sem mais conseguir sugar a lama do
fundo dos poços, tanques e barreiros, daí em diante tudo se tornou num
indescritível tormento. Todo o rebanho foi secando, definhando, afundando o
olhar choroso, aumentando a baba no focinho, tendo a moscaria crescente como
testemunho da aflição. E lá no alto os urubus e os gaviões já voejavam
prenunciando o pior. Sem falar no carcará. Êta bicho danado!
Primeiro uma
vaca mestiça de pele e osso deitou debaixo de um umbuzeiro para não mais
levantar. A fraqueza era tanta que não conseguiu forças para ficar em pé. E foi
quando o carcará chegou para furar-lhe os olhos. E o resto ficou por conta dos
gaviões e urubus. E assim, uma a uma foi tombando e ficando derreada ali mesmo,
entregue à sorte do tempo cruel.
Só restavam
três vacas ainda em pé, mas mesmo assim num andajar vagaroso e tristonho que
mais parecia prestes a dar o passo da despedida. A situação, pois, já estava
insustentável para os demasiadamente frágeis animais quando a nuvem negra,
prenhe de água, começou a passear por cima e, após o relampejar e o roncar do
trovão, começou a derramar tudo de vez.
Os pingos
grossos batendo na pele ossuda eram pontadas, pedras arremessadas diante de
folha seca. E quando o chão se fez lama, as três vaquinhas, tentando alcançar o
umbuzeiro, derraparam no visgo e se esparramaram no chão. Após a chuvarada,
duas delas ficaram ali mesmo, ainda fracas demais, sem forças para se erguer. E
bastou o sol despontar para o carcará aparecer veloz e faminto. Furou os quatro
olhos num só instante e abriu a porteira para a chegada dos carnicentos. As
vaquinhas soltavam mugidos desesperados, porém já era tarde demais. De bicada
em bicada as vidas foram se esvaindo.
E a outra
vaca? Sim, a outra vaca. A outra vaquinha conseguiu levantar ainda com a chuva
caindo. E mais adiante, debaixo do umbuzeiro, assistiu estarrecida suas irmãs
serem devoradas ainda vivas. Chorou por dentro e lacrimejou por fora, mugiu de
dor, soltou longos berros de tristeza e aflição.
E depois
cantou. Na primeira lua cheia que despontou, seguiu rumo às alturas do
descampado e cantou debaixo da lua. Mas será que era canto mesmo? Estava
sozinha, continuava com as imagens vivas daquela tragédia. Mas ainda conseguiu
forças para cantar. Mas será que cantava mesmo?
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e cronista
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