Por: Rangel Alves da Costa(*)
EVANGELHOS
SERTANEJOS
O sertanejo
sempre cultivou fervorosa religiosidade. Seja na cidade ou no campo, na casa
arrumada ou na tapera, dificilmente não se encontram as mais singelas
demonstrações de fé. O anúncio na entrada dizendo que Deus protege a casa,
retratos e imagens de santos, vela acesa, o antigo oratório como miniatura do
céu. Além, logicamente, da devoção presente em cada coração.
Lugar de
beatices, fanatismos, promessas e devotamentos, o sertão é a síntese de uma
religiosidade que não existe mais noutros lugares. A devoção é tamanha que
nenhum tipo de sofrimento - seca, fome, sede, miséria - é imaginado como falta
de piedade divina. E sim como culpa do próprio homem enquanto pecador e suas
desastrosas ações sobre a terra.
Nos momentos
mais difíceis, naqueles períodos em que a desolação toma conta dos quadrantes
esturricados pelo sol escaldante, ainda assim é na religiosidade que se apegam
na esperança de dias melhores. Então se avolumam as rezas e as promessas, os
terços e rosários ficam mais desgastados, os joelhos se dobram com muito mais
devoção e fervor.
Quanto mais
humildes, pobres e calejados são os sertanejos, mais se entregam aos poderes de
Deus, à força dos santos e dos anjos bons e a tudo que, sob o manto da
religiosidade, elevem sua fé, sua proteção diante das dificuldades da vida e a
sempre alentada esperança de salvação eterna. Muitos ainda possuem o jejum como
obrigação, combatem fervorosamente os pecados mundanos, vivem segundo ordena
cada conta de seu terço de todo dia.
Assim se
expressa a religiosidade de um povo que, ao lado dos cultos oficiais, também se
lança entusiasticamente na adoração de outros dois principais protetores, ou
santos nordestinos, como preferem dizer: Padim Ciço, o Padre Cícero Romão
Batista, e Frei Damião, o missionário e milagroso capuchinho. Em muitas casas e
casebres, ainda que sobre a velha mesa não exista qualquer jarro barato de
enfeite, será possível afastar as duas imagens dos dois santos sertanejos.
E um sertanejo
entristecido pelo sol de mais de ano, vendo tudo esturricar ao redor, ouvindo o
mugir do gado faminto e sedento, subiu numa montanha, fez uma oração em
constrição aflitiva, depois levou à boca o berrante, deu uns três sopros
dolentemente ritmados, e em seguida começou a aboiar. Expressava seu aboio
triste como se estivesse declamando para o horizonte ressequido ouvir:
E entoando seu
canto triste soltava suas angústias e esperanças, dizendo:
Bem-aventurados
os pobres sertanejos, porque deles é esse sertão injustiçado, mas glorificado
pelo Senhor.
Bem-aventurados
os que choram, porque serão consolados, terão chuva em abundância, colheita com
toda fartura, comida sobre a mesa e alegria no coração.
Bem-aventurados
os mansos, os pacientes, os que não se desesperam diante do sofrimento, porque
herdarão a terra, e uma terra molhada, com grão semeado e a força de cada um
para remover a terra até dela sair o broto, o fruto e o significado da vida do
sertão e do sertanejo.
Bem-aventurados
os que têm fome e sede não só de Justiça, mas também de clemência das
autoridades, do olhar piedoso dos governantes, de compreensão de quem
desconhece essa vida e de quem vê tudo isso e se faz de fingido. Porque
precisamos também ser fartos dessas coisas que o mundo pode oferecer.
Bem-aventurados
os misericordiosos, porque encontrarão a Misericórdia, pois mesmo na terra seca
semeamos a bondade, no chão ressecado da lagoa semeamos a esperança, no irmão
desconhecido semeamos a amizade, e nos nosso corpo enfraquecido semeamos a
prece e a oração, com a certeza de que Deus não nos faltará.
Bem-aventurados
os puros de coração, porque verão a face e Deus, e assim é o coração sertanejo,
na sua vida para o trabalho, na sua lide sem mágoa, na sua vontade de sempre
doar, ajudar o irmão. E se não faz aquilo que não pode é porque também está
semeando para um dia fazer muito mais.
Bem-aventurados
os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. E é por isso que o
manto da paz se estende sertão adentro, lavando com as águas do tempo o sangue
inocente que escorre e fazendo desse sal da vida um chamando para que vivamos
em paz e comunhão.
Bem-aventurados
os que sofrem perseguição dos poderosos, das autoridades, dos governantes,
daqueles que deveriam ser a mão estendida e se comportam como algozes, pois o
pequeno Davi matuto derruba com o sopro da força divina todo aquele que nos
olha com o olhar de Golias.
Bem-aventurados
sois vós, quando vos injuriarem, perseguirem e mentirem, dizendo todo mal
contra vós por causa do Senhor. Não, não nos farão trocar nossa fé pelas
promessas mundanas nem nosso Deus por ídolos sem altares, pois em cada barraco
de taipa há uma imensa igreja e dentro dela um céu também de barro e com anjos
nus, e ainda assim sorridentes e felizes.
Então exultai
e alegrai-vos irmãos sertanejos, porque é grande a glória que descerá dos céus,
porque de sede e de fome também sofreram os profetas que vieram antes de nós.
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e cronista
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